Meu chifre é o poder

Ver se esborrachar quem fez mal a você no passado sempre tem sabor doce

Discordo dos que dizem que o hit “Shakira: BZRP Music Sessions Vol. 53” é uma vingança da cantora. A vingança é autodestrutiva. Transforma um saco de vacilos numa prioridade, em uma busca por retaliação que consome tudo o que existe. E mesmo quando o objetivo é atingido, todo mundo sai perdendo. Porque a vingança não reverte o dano causado e cede uma imensa quantidade de tempo e energia a quem definitivamente não merecia o esforço.

Impossível não lembrar de Hamlet, protagonista da tragédia homônima de Shakespeare, que perde tudo para vingar seu pai. Morre a mãe dele, morre o amor verdadeiro dele, morre ele próprio e o reino de sua família é invadido pelo inimigo. Traduzindo para a linguagem contemporânea dos memes: parabéns, Hamlet, você foi cirúrgico, mas infelizmente o paciente não resistiu.

Não quero ser moralista em relação à vingança. É um sentimento humano. Assistir quem te feriu no passado se esborrachar na vida tem um sabor mais doce do que geleia de morango. Mas existem outras sensações ainda mais saborosas: estar no topo das paradas, faturar 30 milhões de euros (162 milhões de reais) com o lançamento de uma música, quebrar catorze recordes mundiais no Guinness Book, receber o carinho de milhões de fãs no mundo inteiro, inspirar outras mulheres a transformar sua dor em arte.

Também discordo dos que dizem que o hit da Shakira é uma indireta para seu ex-marido. A letra é bem direta, na real. Mas, discordando agora de mim mesma, a música talvez seja uma vingança indireta. A vingança indireta nada mais é do que uma demonstração de poder, pela exposição de sua própria vulnerabilidade. Ao priorizar a si mesma, Shakira escreve sua própria história, cujo fim não é um destino trágico e sim uma mulher cantando, dançando e faturando.

E como essa coluna visa entregar à suas leitoras um conhecimento que ultrapasse os limites da cultura pop, segue a lembrança de que, na Antiguidade, especialmente nas civilizações matrilineares e pré-patriarcais, o corno era um símbolo de poder e força, que foi deturpado pela associação ao demônio e à humilhação de ter sido traído.

Mas nada é mais poderoso nessa história do que a lição que ela propaga em escala mundial: em um relacionamento afetivo, a melhor saída é sempre por baixo, porque é a única que possibilita a volta por cima.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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