Para Llosa, Bolsonaro é um palhaço, não um militar fascista

O que Llosa chamou de catástrofe, foi um genocídio. E não é preciso ser de esquerda para ver que Bolsonaro tem ideias fascistas, e não uma vocação para fazer palhaçadas. Em sua pregação, deixa claro que seu objetivo é destruir a democracia e tornar-se um ditador. Em outros tempos, escritores assumiram posições políticas no mínimo equivocadas, apoiando ditaduras e ditadores. O que pode ou não contaminar suas obras. Quando contaminam, as obras se perdem, vão para o lixo

Escritor consagrado e Prêmio Nobel de Literatura, Mario Vargas Llosa causou espanto e espécie ao declarar sua preferência por Bolsonaro na eleição presidencial brasileira. Ao lado de García Márquez, construiu uma obra magistral na criação do romance latino-americano em meados do século passado, de onde surgiu com destaque a correnteza do realismo mágico. Ficaram vistos como dois ficcionistas de esquerda, o que é verdadeiro para o colombiano, não para o peruano, que se converteu ao liberalismo.

Controverso na política, Llosa gosta de uma polêmica e dos holofotes, o que lhe deu a imagem de intelectual midiático, que dá opinião sobre tudo. Aos 86 anos, está lúcido e cada vez mais à direita, como mostra sua entrevista para a Ilustríssima, da Folha de S.Paulo, domingo último. Considera Bolsonaro “um palhaço, que provocou verdadeira catástrofe no Brasil com sua posição sobre as vacinas”.

Segundo o escritor peruano, ele não gostaria de estar na situação de escolher entre Bolsonaro e Lula. “Trata-se de uma escolha muito difícil. Mas jamais votaria em Lula, que foi um homem que corrompeu profundamente.” Questionado, disse que as decisões que anularam as condenações de Lula foram tomadas por questões técnicas.

O que Llosa chamou de catástrofe, foi um genocídio. E não é preciso ser de esquerda para ver que Bolsonaro tem ideias fascistas, e não uma vocação para fazer palhaçadas. Em sua pregação, deixa claro que seu objetivo é destruir a democracia e tornar-se um ditador. Em outros tempos, escritores assumiram posições políticas no mínimo equivocadas, apoiando ditaduras e ditadores. O que pode ou não contaminar suas obras. Quando contaminam, as obras se perdem, vão para o lixo.

O grande Borges jamais se posicionou contra ditaduras. À parte seu distanciamento da política, deixou uma obra literária imortal, para sempre registrada em sua História Universal da Infâmia e O Aleph, entre outros livros fundamentais da literatura moderna. O exemplo mais notável de um escritor que tomou partido é o do poeta Ezra Pound, que se tornou adepto do fascismo ao final da Segunda Guerra.

Segundo seus biógrafos, não há explicação razoável para o fato de que um intelectual do porte dele, erudito e generoso, tradutor e editor, ter descambado para as mais ignóbeis e criminosas imbecilidades fascistas e antissemitas. A não ser que tivesse enlouquecido. De fato, houve manifestações de loucura no comportamento de Pound, que decidiu viver na Itália e aderiu ao fascismo de Mussolini. Dizia todas as aberrações a favor do regime num programa de rádio semanal. Preso no pós-guerra e diagnosticado como insano, foi colocado numa jaula e permaneceu por 12 anos num hospital psiquiátrico.

Vargas Llosa e García Márquez foram amigos na década de 60 do século passado, depois brigaram e trocaram socos por questões conjugais. Dois dos maiores escritores de uma generosa safra de romancistas latino-americanos, que se dedicaram apaixonadamente à arte de inventar histórias, muitas delas fantásticas.

Em Conversa no Catedral, seu terceiro livro, que o projetou mundialmente, Llosa traça um painel da sociedade peruana nos anos da ditadura do general Manuel Odria, através da reconstituição da trajetória de vida de dois amigos. Um dos amigos é o jornalista Santiago. Logo no primeiro parágrafo ele faz a pergunta que o romance buscará responder: “Em que momento o Peru havia se fodido?”.

Álvaro Caldas

Sentados a uma mesa do bar Catedral, Santiago e Ambrosio repassam suas vidas, descobrindo de que forma seus caminhos se cruzaram com a história do Peru. Levado agora pela vaidade e o radicalismo de sua conversão ideológica, o escritor apaga de sua memória a história para apoiar um político corrupto, autoritário e golpista na eleição brasileira. Tudo, menos um nobre palhaço.

O autor de A festa do bode, que retrata outra ditadura, a de Rafael Trujillo na República Dominicana, conhece por dentro a engrenagem de terror de um regime ditatorial. Viveu em mais de um. Na segunda vez, no Peru, chegou a disputar e perdeu uma eleição presidencial para Fujimori.

Em sua contorção ideológica, Vargas Llosa sobrepôs à sua consagrada carreira de romancista uma incontornável vaidade de se mostrar, prática comum entre autores menores em sua relação com a imprensa e nas redes sociais. O peruano não ensandeceu, como Pound. Sabe que o romancista deve manter uma distância, deixar que sua obra fale por ele. Retocou sua biografia ao dar apoio a um tosco militar candidato a ditador, ofendendo os brasileiros que vivem um momento crucial de sua história.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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