Millôr: Uma alegria para sempre

foto_post_GeraldinhoFoto de Cristiano Mascaro

Minha geração teve o privilégio de ser alfabetizada e, ainda melhor, analfabetizada pelo Pif-Paf, seção assinada por Emmanuel Vão Gogo, na revista semanal O Cruzeiro. O verdadeiro autor do Pif-Paf, Millôr Fernandes, tinha horror a todos os cânones. Sempre desconfiava das fórmulas e desmontava, quase por compulsão, o que há de clichê no pensamento. Sua inteligência anárquica nunca foi amestrada pela razão e pela semântica:

“Penicilina puma de casapopéias
Que vais peniça cataramascuma
Se partes carmo tu que esperepéias
Já crima volta pinda cataruma.

Estando instinto catalomascoso
Sem ter mavorte fide lastimina
És todavia piso de horroroso
E eu reclamo — Pina! Pina! Pina!

Casa por fim, morre peridimaco
Martume ezole, ezole martumar
Que tu pára enfim é mesmo um taco.

E se rabela capa de casar
Estrumenente siba postguerra
Enfim irá, enfim irá pra serra.”

Quando conheci o Millôr de perto, descobri que ele era um fã de poesia, e repetia de cor diversos poemas extraídos da Antologia de Fausto Barreto e Carlos de Laet. Entre seus favoritos, um de Machado de Assis, dedicado à sua amada, Carolina: “Querida, aos pés do leito derradeiro…” Que Millôr parodiava, dizendo a estrofe final como se fosse papo de botequim ou de surfista, detonando a pompa fúnebre do poema: “Que eu, se tenho nos olhos malferidos/ Pensa-mentos de vida formulados,/ São pensamentos idos e vividos.”

Aliás, Machado de Assis era um dos temas favoritos de nossa conversa, que durou 40 anos. Millôr tinha uma implicância terrível com Machado, e a cada dois anos descobria nele um defeito novo. O último foi que Bentinho, protagonista de Dom Casmurro, era na verdade apaixonado por seu amigo Escobar, e não tinha o menor interesse por Capitu. Discutimos o tema por alguns anos. No fim, capitulei.

Era uma delícia discutir com o Millôr. Tínhamos concepções quase sempre divergentes sobre quase tudo. Política, psicanálise, antropologia. Era raríssimo haver um filme sobre cujas qualidades concor-dássemos. Havia 29 anos de diferença entre nós e eu trazia os vícios intelectuais da minha geração. Ele talvez me considerasse um ET, mas, a despeito disso, sempre me tratou como se pertencesse ao mesmo planeta. E se tornou um sol, em torno do qual sempre orbitei.

Não me atrevo a enumerar aqui as conquistas intelectuais e artísticas do Millôr que testemunhei. Penso nelas todos os dias: não há acontecimento que não me sugira uma lembrança, um verso, um apotegma – com o perdão do palavrão, que ele adorava. Imagino que ficará dele a imagem do polemista, capaz de espinafrar todos os mandatários da república e de refutar as autoridades filosóficas do nosso tempo, entre as quais Freud: “Mulher não tem inveja do pênis: tem inveja é da água encanada.”

Millôr não só era o humorista mais brilhante, mas também um lírico, assediado pelos fantasmas da finitude, do amor e da morte. Seria uma pena que a posteridade não guardasse a memória de sua delicadeza. Quando fiz 35 anos, por exemplo, idade que, para Millôr, era o apogeu de nossa zoologia, ele me deu de presente um livro de arte, chamado La mutation d’un paysage. Nele, o pintor Jörg Müller pinta sempre a mesma paisagem, que vai sendo degradada por interferência da ocupação humana. No cartão que me trouxe com o presente, estava escrito: “Ao companheiro G, na data de seu natalício aniversarial, este livro de uma paisagem, uma via, uma memória, um desastre urbano e humano, para que não se esqueça que todo homem, ao desaparecer, leva no coração várias cidades mortas.”

Felizmente, boa parte do seu talento foi registrada em imagens e palavras. Assim, espero que os leitores do futuro tenham a sorte de adivinhar que, por trás de sua inteligência incomparável, havia também um ser humano raro e rarefeito, feito de som e fúria e de não ser. E que por trás de seu humor e de sua ironia havia sempre a celebração dessa alegria efêmera chamada vida.

Geraldo Carneiro é poeta e escritor

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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