O mesmo fundo amoral

Não sei por que, mas quando ouço loucuras de Jair Bolsonaro de imediato lembro um nome: Roberto Requião. Os dois têm de comum a prepotência, a arrogância, a fobia a quem quer que lhes ameace o poder, a tendência de subverter os fatos para atender seus interesses, o autoritarismo, o nepotismo e a cegueira em admitir erros de parentes em cargos públicos. Há outros elementos em comum, que encheriam vinte linhas. Nunca trabalhei com Jair Bolsonaro. Já trabalhei com Roberto Requião. Posso comparar os dois.

Antes, as diferenças. Quando não houver riscos a qualquer dos atributos acima, Requião consegue ver o interesse público e atendê-lo, até mostrar um laivo de empatia pelo semelhante. Bolsonaro, jamais. É um ser empedernido, frio, sem solidariedade e empatia. Claro, tem emoções, assim como Requião tem emoções, quando se trata de uma situação que envolva os atributos comuns. Mas diferem num ponto, uma diferença fundamental: Requião é inteligente e letrado. Por isso dá ares de racionalidade a seu autoritarismo.

Se quisermos avançar, ambos são machistas em igual medida e capazes de abjetas brincadeiras sobre as mulheres (desafiado, relato algumas, que presenciei). Aqui também evoco semelhança de métodos entre ambos. Falo do método pelo qual Bolsonaro concedeu o “auxílio modess” (expressão dele) às mulheres brasileiras. Lembrando: o auxílio, consistente no fornecimento gratuito de absorventes higiênicos às mulheres carentes, foi concedido pelo presidente em 8 de março passado.

O auxílio veio em lei de outubro de 2021, projeto da deputada Marília Arraes (PT/PE), que Bolsonaro vetou com a expletiva irônica do “auxílio modess”. O Congresso, esse cartório fisiológico que carimba patifarias, manteve o veto – as mulheres ligadas ao Centrão ou não precisam do “modess” ou não precisam do auxílio (que agora exigirão, como receberam o auxílio do covid, sempre sem ter direito). Com a proximidade das eleições e mal visto pelo eleitorado feminino, Bolsonaro sentiu as dores da TPM e mudou de ideia.

Sim, Bolsonaro sentiu e descobriu a TPM, também um Transtorno Pré Lula, e decidiu tornar obrigatório o fornecimento do auxílio modess. Mandou lei para o câmara e fez o árduo esforço para aprová-la, como a deputada Marília Arraes? Não, os ditadores usam ucasses, como os czares, bandos, como os senhores feudais, e decretos, como na idade contemporânea. Ucasses, bandos e decretos dispensam o contraditório da lei e têm efeito imediato. A ação do ditador tem efeito imediato – inclusive o da demagogia.

Em suma, Bolsonaro resolveu sua TPM com o modess alheio, da deputada Marília Arraes. Para quê? Simples, para não rechear com azeitona a empada do PT. De azeitonas, milicianos e bolsonaros entendem mais que coronéis pernambucanos. As brasileiras vão extrair o oportunismo e a maldade de Jair Bolsonaro? Claro que não; irão ao cercadinho mostrar gratidão – e ele, como de hábito, fará piadas como o ‘salvador das pepecas’. Brasileiras e brasileiros são messiânicos, sempre foram.

Comecei com Roberto Requião, encerro com ele. Em 1991, eleito para suceder Jaime Lerner – sua nêmesis desde o Colégio Estadual do Paraná – descobriu o decreto do ex-governador que regulava eleições em estabelecimentos oficiais de ensino. Requião convocou a Procuradoria Geral do Estado para anular o decreto. A PGE só encontrou uma falha na decisão de Lerner: a forma; as eleições deveriam ser reguladas em lei, não em decreto. O procurador geral do Estado, Carlos Marés, aprovou a estratégia sugerida pelo procurador responsável pelo caso.

A estratégia consistia em propor ação de inconstitucionalidade no Supremo, com pedido de liminar para sustar os efeitos do decreto de Jaime Lerner. O Supremo concedeu a liminar. De acordo com a tese do processo e da liminar, o governador deveria propor à assembleia legislativa projeto de lei para as eleições nas escolas. Para encurtar a história, não foi o que aconteceu: Requião fez o que reprovara em Lerner e baixou decreto para regular as eleições. O auxílio modess de Bolsonaro é o arquétipo das eleições de Requião.

As histórias têm o mesmo fundo amoral. Em ambas dois manipularam a ordem jurídica para extrair benefícios políticos. Há uma nota de atenuação no caso de Requião, pelo qual, tirando a megalomania autoritária, não houve danos institucionais maiores (nesta situação, sem examinar o conjunto da obra do governador). No caso de Bolsonaro não há nota de atenuação, pois há de se considerar a humilhação e o sofrimento que causou às mulheres carentes; de resto, nunca há nada a atenuar em Bolsonaro.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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