Olha a água!

Monica Soutelo

Todo mundo corria pra encher rapidamente o que conseguia. Se desse tempo, ainda tomávamos banho de chuveiro. Senão, depois era na base do balde mesmo. Essa é uma das lembranças mais nítidas que tenho da infância. Principalmente do grito de guerra: “Olha a águaaaaa!!!”. Soava divertido aos ouvidos de uma menina. Mas sei que de divertido não tinha nada

Não sei você, mas eu acho notável os eufemismos que são usados para encobrir as mazelas dos desgovernos. Crise hídrica, por exemplo. Tucanaram a falta d’água.

Na conta de luz que acabo de receber, veio registrada em letras minúsculas a explicação para o aumento maiúsculo: Bandeira(s)/Tarifária(s) aplicada(s) no mês – ESCASSEZ HÍDRICA.

Como carioca, sou escolada nessa “bandeira”. Quem viveu no Rio na década de 50 do século passado ganhou diploma no quesito falta d’água e apagão. Era a coisa mais natural do mundo essa situação. Tinha até aquela marchinha, lembra? “Rio de Janeiro, cidade que nos seduz, de dia falta água, de noite falta luz” (Vagalume, 1954, Vitor Simons e Fernando Martins).

Eu morava num prédio em Copacabana cujas áreas de serviço e banheiros davam para um vão livre de onde ressoavam conversas e cantorias. Quando tinha racionamento e a água chegava, havia o famoso grito de guerra que ecoava: “Olha a águaaaa!!!”. Seguido do barulho torrencial das águas enchendo tanques, banheiras, baldes e bacias.

Todo mundo corria pra encher rapidamente o que conseguia. Se desse tempo, ainda tomávamos banho de chuveiro. Senão, depois era na base do balde mesmo. Essa é uma das lembranças mais nítidas que tenho da infância. Principalmente do grito de guerra: “Olha a águaaaaa!!!”. Soava divertido aos ouvidos de uma menina. Mas sei que de divertido não tinha nada.

O berro d’água e o barulho dela chegando fazem parte da minha memória afetiva. Assim como a banheira cheia. Os apartamentos de classe média tinham banheiras. Mas nunca vi ninguém em casa tomar banho nela. Também, num lar com um único banheiro para seis pessoas (eu, minha irmã, meus pais e meus avós), seria impossível ocupá-lo pelo tempo que um banho de banheira exige. Assim, a peça não tinha nenhuma utilidade prática, a não ser nos períodos de falta d’água mesmo. Aí, usada como reservatório, ela era a salvação.

Depois, quando fizeram a famosa adutora do Guandu, no tempo do governador Carlos Lacerda, e o problema do abastecimento foi resolvido por um bom período, as banheiras voltaram a sua inutilidade. Foi aí que entraram em ação os… decoradores. Inventaram de fazer da banheira um sofá. Isso mesmo: um sofá no banheiro. Cobria-se a banheira com um compensado e por cima dele ia um estofado de plástico com direito a almofada e tudo. Ô, moda cafona. Mas quem viveu nos 50 viu. Não foi só lá em casa não que a brilhante ideia pegou. A solução virou coqueluche.

Com o passar dos anos, com o desuso e a diminuição do tamanho dos apartamentos, as banheiras sumiram. Assim como começam a desaparecer os tanques também. Novas construções começam a dispensar também esse elemento. Daí que se a crise hídrica chegar, muita gente vai se ver em maus lençóis para reservar um pouco de água para o essencial. Imóveis modernos não combinam com problemas antigos…

E não deixa de ser curioso observar como as marchinhas de carnaval de décadas passadas podem se revelar atuais. Não só por suas qualidades, mas porque o país teima em não mudar. Vagalume, cujo refrão menciono acima, é um exemplo típico com sua letra que trata de falta d’água e de energia.

Periga ser ressuscitada, junto com Tomara que chovaque clama por uma boa chuva em pleno carnaval: “Tomara que chovatrês dias sem parara minha grande mágoaé lá em casa não ter águaeu preciso me lavar”.

Esta última é da dupla Paquito e Romeu Gentil, à qual me referi na coluna passada, lembrando seus vários outros sucessos carnavalescos. Cantei muito as duas marchinhas nos carnavais da minha infância. Temo que elas voltem nos próximos meses a fazer sentido como fizeram no passado. Mas torço para que isso não aconteça. Não vai ter nenhuma graça ver ressurgir o grito de guerra “Olha a águaaaa”.

Saudações! E até a próxima.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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