“Monstro do Maracanã” e o “Pantera Negra” – II parte

José Carlos Bauer, o Bauer “solamente”, era meio campista do São Paulo (onde foi campeão com o treinador judeu-húngaro Béla Guttmann) e esteve na seleção brasileira na Copa de 1950. Jogou tanto que Nelson Rodrigues só se referia a ele como “O Monstro do Maracanã”. Formava o meio de campo com outro fora de série chamado Danilo Alvim (“O Príncipe”, mais uma vez nas palavras de Nelson Rodrigues, “Irmão do Maracanã” como o denomina, corretamente, o Solda, eis que o nome oficial é Estádio Jornalista Mário (Rodrigues) Filho. Eram os dois que alimentavam o trio atacante Zizinho, Ademir Menezes (que tinha ódio quando era chamado de Ademir “de” Menezes) e Jair Rosa Pinto (que tinha pavor de ser chamado de Jair “da” Rosa Pinto). Depois da Copa de 1954, onde também foi titularíssimo, Bauer recebeu uma proposta irrecusável do Botafogo. Ficou em dúvida, havia praticamente nascido dentro do São Paulo. Foi falar com Béla Guttmann, que lhe disse: “Aceite, você não é mais menino, vão lhe pagar bem mais do que você ganha e com os 15% você dá de entrada numa casa própria”.

Naquele tempo, vigorava a lei do passe, o clube que detinha o “passe” era o “dono” do jogador. Quando negociado o passe entre os clubes, o jogador tinha direito a 15% sobre o valor da transação, a ser pago pelo clube que o “vendia”. Bauer não se arrependeu e ficou agradecido a Béla Guttmann pelo resto da vida.

Voltando para o Brasil, Bauer continuou exibindo o seu grande futebol. Em 1958, não foi à Copa da Suécia. Sofrendo de várias lesões, havia deixado de ser jogador naquele ano e passou a treinar vários times do interior de São Paulo, jamais recebendo uma chance nos grandes clubes. O campeonato paulista – naquela época, de calendário muito mais folgado, não havia Brasileirão, Copa do Brasil e Libertadores – começava em final de abril, início de maio, e os grandes clubes aproveitavam os primeiros meses do ano para rendosas excursões pelo mundo. O Santos, por Pelé, e o Botafogo, por Garrincha, jogavam dezenas de partidas em todo o planeta Terra. Bauer treinava a Ferroviária de Araraquara e ela, metida a besta, resolveu excursionar pelo Exterior também. Como na Europa ninguém sabia quem era a Ferroviária, restou a África. O primeiro jogo foi contra o Sporting de Lourenço Marques.

No domingo, o estádio municipal de Lourenço Marques estava lotado. A Ferroviária entrou em campo com seu vistoso uniforme cor de vinho tinto. O Sporting local adentrou com calções brancos, mas imundos, e camisas de listras horizontais em verde e branco completamente desbotadas. As botas (chuteiras) dos locais estavam rasgadas e furadas. Na verdade, quando os uniformes não tinham mais serventia no Sporting de Lisboa eram encaminhados à Lourenço Marques. Cada vez que um mulato escuro e alto tocava na bola a torcida local ia ao delírio e gritava Eusébio. Bauer ficou curioso, mas por pouco tempo. Eusébio começou a empilhar gols. Bauer ficou maravilhado com o que viu naquela tarde.

Chegando ao hotel se dirigiu à recepção e perguntou como fazia para conseguir uma ligação telefônica para o Brasil. O atendente, português e branco, abriu um sorriso e respondeu: “Meu senhor, hoje não vais fazer nada. É domingo, o dia de folga da senhora telefonista. Amanhã, depois das oito, procure a senhora telefonista na sala ao lado do banheiro das damas”. Bauer mal conseguiu dormir. As oito em ponto, procurou a senhora telefonista, também portuguesa e branca, e pediu uma ligação telefônica para o Brasil, dizendo que era para São Paulo e lhe passou um número. A senhora telefonista o olhou de cima abaixo e disparou: “Meu senhor, o que está a me pedir é quase impossível. Estamos numa colônia, na África. Para conseguir o que o senhor me pede é muito difícil, quase impossível, repito! Tenho que chamar a telefônica local para que ela, pelo rádio de ondas curtas, faça contato com a telefônica em Lisboa. De Lisboa, também pelas ondas curtas, devem contactar o Rio de Janeiro. O Rio de Janeiro tem que comunicar a telefônica de São Paulo e daí ela chama o número que o senhor está a solicitar”. Demora, se tudo tiver sucesso, umas doze horas”. Bauer não se deu por vencido e disse: “A senhora telefonista disse, por duas vezes, que é quase impossível, mas não falou que é impossível. Eu espero as doze horas”.

Sentindo firmeza no interlocutor, a senhora telefonista se rendeu: “O senhor procure um sofá bem confortável e fique a esperar até as oito da noite. Bauer obedeceu. Quase dez da noite, a senhora telefonista: “Senhor Bauer, São Paulo na linha’.

“Boa tarde. Sala da presidência do São Paulo Futebol Clube! Com quem deseja falar?”. Bauer não acreditou, tinha dado sorte, eram dez da noite em Moçambique, mas cinco da tarde em São Paulo. Ofegante, se identificou e pediu para falar com o presidente. “Bauer? É claro que eu falo com ele. Foi um dos maiores jogadores que tivemos. É uma honra”. Bauer começou a falar rapidamente e as frequentes interrupções do presidente do tricolor paulista começaram a lhe irritar. “De onde mesmo você está falando Bauer?”, “Lourenço o que?”, “Fica no interior da Bahia?”, “Sergipe?”, “Ah, Moçambique”, “Mas onde fica esse raio de Moçambique?”, “África?! O que você está fazendo na África?”, “Ferroviária, a de Araraquara?”, “Tão bom quanto Pelé?”, “Difícil de acreditar!”, “Na África e joga quase como Pelé. E você quer que eu acredite nisso”, “Quer que eu mande alguém para Lourenço não sei das quantas?” “Você ficou louco, Bauer!” “Pelo jeito, passou e beber e está de porre na África!” “Boa tarde, Bauer, passe bem!”.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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