“Monstro do Maracanã” e o “Pantera Negra” – IV parte

Como ainda havia uma folga de horário antes do avião decolar do aeroporto de Lourenço Marques, o presidente do Benfiquinha passou no único magazine da cidade e comprou sapatos, fato (terno), camisa, gravata e um chapéu para Eusébio. Não queria que o puto chegasse mal vestido no Estádio da Luz. Embarcaram e Eusébio esteve nervoso durante todo o voo. Por evidente, era a primeira vez que entrava num avião.

Desembarcaram no aeroporto da Portela tarde da noite e pegaram um táxi rumo ao estádio da Luz. Eusébio, que ainda não havia completado 18 anos, ficou deslumbrado com as iluminadas avenidas de Lisboa, nunca tinha visto nada igual. Mais tarde, muito por influência de seu compatriota Mário Coluna (de quem falo adiante), ficou sabendo que a grande periferia de Lisboa, onde viviam a maioria dos adeptos do Benfica, era repleta de negros, mulatos como ele e brancos pobres que viviam em bairros sem luz, água, esburacados e tão ou mais miseráveis que o seu Mafalala. Jurou para si mesmo que não desperdiçaria a chance que lhe caiu do céu.

Já havia um funcionário para receber Eusébio no Estádio da Luz. Levou-o ao alojamento, que ficava debaixo das bancadas (arquibancadas). Eusébio não acreditou quando o funcionário lhe indicou uma cama e disse “é a sua”. Jamais havia dormido numa. O gajo ainda lhe deu um pijama e um par de tamancos. O alojamento era sujo, úmido, tinha mais de 30 camas, quase todas ocupadas por outros putos, e fedia a urina e fezes já que os banheiros não tinham portas para que os meninos não se trancassem neles para bater uma punheta. Eusébio abriu um largo sorriso, se sentia num palácio. Dormiu como um príncipe.

Na manhã de quinta-feira, foi acordado pelo próprio Béla Guttmann que o mandou ao banheiro fazer a higiene e tirar o pijama. O funcionário lhe deu uma toalha, uma escova e um dentífrico (pasta de dentes), além de um par de peúgas curtas (meias soquete), um box (cueca), uma camisola (camiseta) branca, um short (calção), um par de sapatos desportivos (tênis) e um agasalho de algodão vermelho, onde se lia em letras brancas “Sport Lisboa e Benfica”. Pronto e arrumado, se apresentou a Guttmann que o aguardava na porta do alojamento e foram para o refeitório para o pequeno almoço (café da manhã). Eusébio nunca tinha visto tanta comida e se fartou pela primeira vez na vida.

Terminada a primeira refeição do dia, Guttmann o levou ao departamento médico. O doutor simpatizou de imediato com aquele mulato escuro com um largo sorriso de orelha a orelha. Mandou-o sentar e pediu que narrasse toda a sua história. Eusébio, lembrando-se dos conselhos da mãe, obedeceu e contou tudo. Satisfeito com as respostas, o médico mandou que ele se desnudasse, no que foi prontamente atendido. Colocou-o numa balança e mediu a altura e o peso. Depois, realizou um longo exame em todo o seu corpo. Ao final, olhou para Guttmann e para o presidente do Benfica (que havia chegado) e disse: “Plenamente aprovado. Altura e peso absolutamente compatíveis. Parece ser magro, mas não é assim. Na verdade, não tem um milímetro de gordura em todo o corpo. Joelhos inteirados. Biotipo perfeito para um jogador de futebol. Antes que me esqueça, demitam o médico do Benfica de Lourenço Marques, é meu colega, mas não entende merda nenhuma do corpo humano”.

Guttmann olhou para Eusébio e disparou: “Eusébio, vamos ao relvado (gramado), mas antes vá ao balneário (vestiário) e troque os sapatos esportivos por um par de botas e as peúgas curtas pelas compridas”. Foi atendido.

Ao adentrar o relvado, Eusébio ficou profundamente impressionado com o tamanho das bancadas do Estádio da Luz. Imaginou-as com público e teve um pequeno tremor no corpo. Guttmann chamou o técnico dos juniores e disse: “O gajo aqui do lado é o Eusébio, chegou de Moçambique na noite de ontem. Escale-o como ponta de lança. Eu vou ver o treino na bancada”.

Os demais putos entraram em campo e começaram a jogar, vermelhos versus brancos (time onde estava Eusébio). Na primeira vez que pegou na bola, Guttmann tremeu de emoção.  O cartão de visitas foi sublime, colocou um colega na cara do gol. Na segunda vez que tocou na pelota, Eusébio avançou sobre os marcadores, driblou três e na saída do guarda-redes (goleiro) lhe deu um chapéu, matou o esférico no peito com elegância que só os gênios da bola possuem e marcou um golaço. Béla Guttmann ergueu os braços para o céu, agradeceu ao Deus Único das três grandes religiões do mundo e também a Bauer, afinal o seu ex-jogador não tinha exagerado. Ao final de quarenta minutos, com vários gols e assistências de Eusébio, Béla Guttmann ordenou que o tirassem, tinha viajado muitas horas, deveria estar cansado.

O presidente do Benfica, que também estava muito impressionado, foi até Guttmann e indagou: “E daí?”. Guttmann respondeu: “Inscrevam-no na Federação ainda hoje. Joga domingo!”. “Nos miúdos (juniores)?”, perguntou o presidente, e Guttmann respondeu na lata: “Não, no primeiro quadro”. “Mas é jogo grande, contra O Belenenses!” Guttmann disparou: “Joga domingo contra O Belenenses e na quarta em Berna contra o Barcelona. Inscrevam-no também na UEFA. Ninguém no Barcelona o conhece e iremos aprontar a maior surpresa do futebol europeu com Eusébio. Vai ser um dos maiores jogadores da história do futebol mundial”. O presidente começou a rir e não parou mais durante o dia.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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