Muito cansada

Se eu te der uma lista do que você precisa resolver, eu já estou resolvendo pra você!

Se você me encontrar por aí totalmente absorta, inexpressiva e sonolenta, não pense que é doença, tristeza ou excesso de medicamentos. Eu só estou muito cansada.

Ontem fiquei observando a discussão infinita sobre a escolha da Elizabeth Bishop como homenageada da próxima Flip sem conseguir digitar nem sequer um “aff, parem” no Twitter.

Participei de um podcast sobre política e, ao me perguntarem sobre o óleo no mar, eu respondi um vergonhoso “super triste, né?”, e sobre a reforma da Previdência o mais longe que eu cheguei foi “precisava ser feita, mas podia ter sido diferente”. Diferente como? Não sei. EU NÃO SEI. Eu li, mas esqueci o que eu tinha que falar para ser inteligente e cool e bem informada e alinhada com a esquerda porém com o pé no chão. Eu ando muito cansada.

Eu passei a manhã com o médico do meu pai ao telefone e depois com o meu pai ao telefone, explicando tudo o que o médico tinha falado, daí meu pai não entendeu um monte de coisas e ligou para a minha mãe, que me ligou e pediu que eu ligasse novamente para o médico. Não demorou, minha mãe apareceu aqui e disse que estava se sentindo muito mal, e eu liguei para o mesmo médico e lhe pedi que a atendesse com urgência, e ela disse que eu não entendia as coisas e foi embora brava.

Em seguida, eu liguei para o cara que me vendeu um filtro que veio quebrado. Eu pedi que meu marido fizesse isso, mas ele acha que o utensílio está ótimo e segue tomando água congelada apenas para não ter o trabalho de ligar para o vendedor.

Um pernilongo picou a mim e à minha filha a noite toda, então, pela manhã, eu pedi ao meu marido que não esquecesse mais a janela aberta, ao que ele respondeu, dando o caso por encerrado: “Duvido que tenha sido o mesmo!”.

Eu estou escrevendo uma série de TV, um filme, um livro, esta coluna, uma coluna de resenhas, um podcast e mais um podcast. Eu preciso me exercitar ou meu corpo inteiro dói, o que me leva a tomar anti-inflamatório e ficar mal do estômago por dias.

Eu tenho uma pança mole que nunca tive. Eu fiquei até as 11h da noite fazendo minha filha dormir. Quando eu saí do quarto dela e vi as meias do meu marido no corredor, desejei morrer, mas eu sou muito nova e muito legal e muito talentosa para morrer.

Eu não quero mais achar a vida tão chata. E, se meu marido continuar circulando pela sala dizendo “anda logo” enquanto eu faço a mochilinha da minha filha, eu vou assassiná-lo e eu sou muito nova e muito legal e muito talentosa para ir presa.

Talvez na cadeia eu terminasse meu livro. Ah, Tati, mas tudo isso é white people problem. Não é. Na minha casa e na casa das milionárias e na casa das pessoas mais pobres, existe essa vontade gigante e latente de gritar “chega”.

E, para não ter mais uma amigdalite, eu preciso dizer isso agora. Eu trabalho feito uma vaca e não quero cuidar dos problemas da casa sozinha! Se eu te der uma lista do que você precisa resolver, eu já estou resolvendo pra você! Eu não sou sua mãe!

Eu queria muito saber como a reforma da Previdência deveria ter sido feita. Nos meus grupos de mensagens, quanta gente engajada sobre a prisão injusta em Alter do Chão.

E como enoja ver o conservadorismo opinando nas artes e na cultura. Eu queria escrever uma coluna superfoda sobre tudo isso.

Eu queria ser psicanalista e fitness e sexy e uma mãe que brinca e dança o dia todo. Mas eu estou cansada e a água está trincando e o pernilongo está solto e eu tenho tanto trabalho para entregar hoje e minha filha está naquelas semanas em que chora demais e me bate.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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