Nós, índios

Por conta de alguns de meus livros, é notória a paixão que nutro por índios, particularmente os guaranis. Some-se a isso a infância no sertão profundo, aquele tempo em que o Paraná não havia se tornado ainda o mar de soja em que se converteu há algumas décadas. Sou tetraneto de índia caçada a laço às margens do rumoroso Cinza nas então florestas do norte do Estado.Minha mãe mesmo era bugra – alguma vez avessa à metrópole com que a aldeia (moral) curitibana aqui e ali botava banca pra cima dela. No coice que a velha e saudosa D. Cida revidava. Sem a menor hesitação. Há, no fabulário da família, episódios quase grotescos nesse sentido – que vão do horror a elevadores a bolsadas em seguranças de supermercados.

Ah, D. Cida e suas também generosas pajelanças na então Vila Tingui da Curitiba que o vento levou… Todo dia é dia de índio, sabemos, ainda que as comemorações oficiais tenham se dado domingo último. Para variar -de modo tragicamente melancólico. Dos milhões de índios da Terra Brasilis restaram aí uns 300 mil, se tanto. Vê-los de brinquinho de brilhante e torcendo para o Coríntians, como aconteceu, esses dias, no Programa do Jô, é um chute na canela, para não dizer em outros lugares… Comemorar o quê? Foi proposital – e voluntarioso, sim! – não falar de índio, domingo passado, aqui neste canto de jornal.A última vez que vi um índio autêntico, foi na Festa Literária Internacional de Paraty/ 2006, a Flip, para a qual fui como convidado oficial. Acho que já falei da cena dantesca: jovem e esquálido, o olho roxo, maltrapilho e bêbado de um tonel, o parati-mirim tentava, inutilmente, se levantar da calçada. Tentei ajudá-lo e desde o chão ele cuspiu com força, tentando certamente me atingir a cara, e acabando por babar-se ainda mais. Foi, para dizer o mínimo, humilhante.

A seguir, assisti, estarrecido, à polícia arrastá-lo pelas pedras centenárias como se arrasta um porco ou um cachorro morto. Esperneava e imprecava lá em sua língua engrolada. Exaustos, os policiais o jogaram numa dobra de esquina menos movimentada. E ali ele, parece, desmaiou.Também pelas estradas mato-grossenses, de outra vez, vi o que restou dos guaranis: choças molambas de onde acenam, velhos e crianças. Alguns param os carros e são logo rodeados pela indiarada, a pedir comida, cachaça, dinheiro. Alcoólatras e esfarrapados os índios da fronteira não têm mais sequer identidade.

Saber que um dia foram guerreiros e artesãos, caçadores e diabólicos mateiros é só uma lembrança que a nossa culpa recolhe e cala. Impotentes, outra vez impotentes baixo o hipócrita cristianismo de nossos “bentos” dias. D. Cida tinha razão: só a chutes e pontapés, sombrinhadas e beliscões.

26|4|2009

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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