Nada será como antes

Nada será como antes: sabe aquele pessimismo de estimação, sob medida ou flexível, no piloto automático ou no improviso, o velho e bom pessimismo de tocaia na realidade, sempre pronto pro bote em cima dum fato novo? Sisqueça. Daqui pra frente todo pessimismo será insuficiente.

Nada será como antes: ah, kibon que eram os abraços apertados, os apertos de mão pra valer, os tapinhas nas costas e até a troca de perdigotos amigáveis. Irresistíveis os convites pruma reunião caseira com trocentas pessoas num espaço onde mal cabem 10 ou 15. E, claro, saudades do uso indiscriminado da palavra saudável.

Nada será como antes: lavar as mãos por lavar, apenas curtir o frescor frio da água no verão ou sua quentura no inverno. Não se pegar suspirando por uma torneira de álcool gel junto à porta de entrada. Nem ter com as compras um encontro compulsório de gelólatras anônimos. Álcool gel, gênero de primeiríssima necessidade, quem diria.

Nada será como antes: nunca mais entrar num ônibus com naturalidade, pedir licença pra sentar e puxar conversa ou dar trela. Jamais voltar a se firmar nos corrimões pra se segurar. Nem dar um passinho a mais naquele corredor apinhado de corpos suarentos e deseducados. E exaltar, pro resto das nossas vidas, a plaquinha do fale ao motorista somente o indispensável, e exigir dele a recíproca.

Nada será como antes: e enaltecer elevadores vazios à sua espera, rezar por salas de espera desabitadas, torcer por bancos de praça sem ninguém, e praças sem nenhuma alma. Vibrar por ter se condicionado faz tempo a atravessar pro outro lado da rua ao se deparar com um desmascarado na sua direção. Idolatrar até o fim dos tempos a expressão distanciamento social.

Nada será como antes: adeus, escurinho do cinema, telona amada, o lugar costumeiro entre as poltronas, o cinema favorito e a ida até lá. Mal vindos os streaming e seus catálogos limitados e medianos, mal vindas as telas dos televisores e as telinhas dos computadores a reduzir a farelos pixelados o impacto de qualquer filme. Maldito o conformismo da mente a palmos dos astros e desgraçada seja essa acomodação dos quadris no sofazão de casa.

Nada será como antes. Sofrer por não se arriscar a participar de manifestações públicas a favor da ciência e da paz ou contra a idiotice e a violência. Se atormentar por não se atrever a aderir ou conclamar ida às ruas pra derrubar o deprimente da república. Sentir-se cagão pela impotência maior que a do pau. Amargar a expectativa de que a eternidade é isso que taí.

Nada será como antes. E acho que nenhuma musa inspiradora vai me trazer algum assunto que não seja pandêmico, vacinântico, bozonamista, miliciânico, negaciômaco ou  cpidínico etc. Argh!

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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