Não são velhos fascistas; são fascistas que envelheceram

Não escrevo sobre criminosos golpistas que apoiam psicopatas genocidas e se identificam com eles

Tenho sido bombardeada por uma mesma pergunta: “Por que você não escreve sobre os velhos fascistas e golpistas que apoiam psicopatas genocidas e se identificam com eles?”.

A resposta é simples: eu não consigo escrever sobre fascistas, golpistas e psicopatas genocidas, de nenhuma idade. Eu só consigo escrever sobre aquilo que eu pesquiso e nunca pesquisei velhos ou jovens fascistas e golpistas. Aliás, fascistas e golpistas existem em todas as idades, não é mesmo? E eles envelhecem… Ou será que alguém acredita que eles se tornaram fascistas e golpistas depois dos 60 anos?

Apesar de já ter feito pesquisas quantitativas por meio de questionários com mais de 5.000 homens e mulheres de diferentes classes sociais, minha forma principal de buscar compreender a realidade dos mais velhos é por meio de entrevistas em profundidade e da observação participante.

Desde março de 2015 convivo intensamente com nonagenários e suas famílias: converso com eles todos os dias, vou ao supermercado e botecos com eles, frequento suas casas e eles a minha. Poderia dizer que alguns são mais conservadores, mas nenhum deles é fascista ou golpista.

O melhor momento do meu dia são as horas que eu passo, junto com eles, conversando, lendo, fazendo um jogo de anagramas, cantando, ouvindo suas histórias de vida e dando muitas risadas. É o momento em que percebo que o que eu faço não é apenas uma pesquisa: é o propósito da minha vida.

Podem achar que é brincadeira, mas eu me tornei “nativa”, como dizem os antropólogos: passei a ter 93 anos! Como meus amigos nonagenários, meu lema passou a ser: “Eu não preciso mais, mas eu quero!”.

Já percorri todo o percurso acadêmico obrigatório: mestrado, doutorado, concurso para professora da cadeira de métodos e técnicas de pesquisa qualitativa na Universidade Federal do Rio de Janeiro em 1997, para professora titular em 2015, pós-doutorado sobre envelhecimento e felicidade em 2021, mais de 30 livros publicados e, hoje, mergulhada em uma pesquisa de pós-doutorado sobre autonomia, superação, amizade e felicidade na velhice.

Já há bastante tempo eu poderia ter parado de pesquisar e passar meus dias caminhando descalça na areia da praia ou fazendo qualquer outra coisa que eu quisesse. Mas a minha maior paixão é estudar, ler, pesquisar e, especialmente, aprender tudo o que os nonagenários estão me ensinando sobre a minha própria bela velhice.

Eu não preciso mais, mas eu não consigo parar de escrever compulsivamente sobre as dores e os sofrimentos dos mais velhos que se sentem invisíveis, descartáveis, inúteis, estigmatizados, desamparados e ignorados dentro das próprias casas e famílias. Velhos que sofreram, e ainda sofrem, com a trágica morte de 700 mil brasileiros, com o descaso com a vacinação e com os discursos criminosos que se disseminaram durante a pandemia: “Velhos têm que morrer mesmo, vai ser até bom para a Previdência. O grande problema do Brasil é que todo mundo quer viver até 100 anos”.

Por que estou contando um pouco da minha história? Não é para me justificar com aqueles que estão me cobrando: “Você precisa escrever sobre os velhos fascistas e golpistas”, até porque eu sou incapaz de compreender fascistas e golpistas de qualquer idade. É só para vocês saberem que quando eu escrevo sobre os mais velhos não é uma mera opinião de uma “especialista” em envelhecimento, mas a reflexão cuidadosa de uma antropóloga apaixonada que escuta, convive, aprende, respeita, admira, confia e ama profundamente os seus melhores amigos.

Busco exercer diariamente “a arte de escutar bonito” os nonagenários. É por meio da escuta profunda que procuro compreender e transformar a cruel realidade que os mais velhos precisam enfrentar dentro das próprias casas e famílias.

É muito triste constatar que a velhofobia saiu do esgoto e que o discurso odiento sobre os mais velhos está se disseminando com tanta força. Muito triste!

Escrevo desde 2010 na Folha com um único propósito: combater a velhofobia criminosa que existe no Brasil. Espero que meus leitores e leitoras não adotem o discurso velhofóbico, preconceituoso e estigmatizante: “Velhos são fascistas e golpistas”.

Não é por acaso que eu adoro uma música que Ney Matogrosso cantava nos “Secos & Molhados” em 1973: “Eu não sei dizer nada por dizer, então eu escuto. Se você disser tudo o que quiser, então eu escuto. Se eu não entender, não vou responder. Então eu escuto. Eu só vou falar na hora de falar. Então eu escuto”.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
Esta entrada foi publicada em Mirian Goldenberg - Folha de São Paulo e marcada com a tag , . Adicione o link permanente aos seus favoritos.
Compartilhe Facebook Twitter

Deixe um comentário

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.