O que ficou por dizer me parece bastante esclarecedor do processo poético desse pernambucano, seco como caatinga, autor de uma obra muito pessoal. A questão que propus responder, na crônica anterior, foi se a poesia dele é de fato racional, em contraposição à outra poesia, que seria sentimental. Essa contraposição -que parece implícita na teoria cabralina- não cabe no contexto da moderna poesia brasileira, nascida com Mário e Oswald de Andrade, que substituiu o sentimentalismo pelo humor. Essa irreverência anti-romântica só se acentuará em Carlos Drummond de Andrade e Murilo Mendes, poetas que influíram na formação de João Cabral.
O anti-sentimentalismo do poeta pernambucano é, de certo modo, um aprofundamento da atitude dos modernistas, com um fator a mais: a preocupação em realizar o poema como objeto autonomamente elaborado, produto de racionalidade construtiva, e não do improviso e da espontaneidade. Está aí a diferença entre ele e seus antecessores que, se não eram sentimentais, eram espontâneos, deixavam o verso fluir sem um rigor maior.
De uma maneira ou de outra, fazer ironias e exercer o humor ainda era, na visão de João Cabral, um outro modo de incutir no poema a individualidade do autor e, conseqüentemente, seus sentimentos, sua subjetividade. O poeta João Cabral não brinca em serviço, não ri, não faz graça. Ele constrói uma obra que existirá por si, por sua própria estrutura, como um edifício de cimento e vidro. O que não significa, na verdade, que ele também não transfira para o poema a sua individualidade: uma individualidade que se quer impessoal, identificada não com a ternura ou o afeto natural, mas com a dureza da pedra e o cortante das facas. Foi isso que lhe permitiu construir uma obra única e inconfundível na poesia brasileira.
Na crônica anterior, chamei a atenção para o propósito de João Cabral em evitar, na realização do poema, o fluir espontâneo da linguagem. Essa espontaneidade tornaria o poema a expressão fácil dos sentimentos do poeta e de sua subjetividade, em detrimento do controle sobre sua realização, para torná-lo, segundo ele, um produto consciente e racional. Afirmei, então, que, se é verdade que a razão desempenhou papel decisivo na realização de seus poemas, estes, como composição vocabular, violentam e transcendem a ordem do discurso. O que, porém, me faltou dizer foi de que modo esse processo se dá.
E, se não o disse foi porque não o havia percebido até ali. Isso ocorreu, de fato, quando reli o texto já publicado – do qual me havia distanciado e quase esquecido. Deu-se como uma descoberta do que estava oculto no que escrevera. Quando ali afirmara que, para deter o fluxo espontâneo da linguagem, João Cabral entortara o discurso, tornando-o incômodo ao leitor, obrigado assim a decifrá-lo, mantive-me ainda na superfície do problema.
O que se revelou, na releitura do meu próprio texto, foi que JC não apenas torce a construção sintática, mas vai além: violenta a própria racionalidade do discurso, embora o faça racionalmente. Vou dar alguns exemplos. No poema “Educação pela Pedra”, ele diz que a pedra “pela dicção começa as aulas / lições de pedra (de fora/para dentro) para quem soletrá-la”. E acrescenta que, no sertão, “a pedra não sabe lecionar” porque “lá não se aprende a pedra: lá a pedra/uma pedra de nascença entranha a alma”. Em outro poema, a que já me referi anteriormente -intitulado “Uma Faca só Lâmina”-, a audácia das imagens vai num crescendo, até lembrar o João Cabral dos primeiros versos surrealistas.
Parte da imagem da faca no corpo para afirmar a exigência da lucidez sobre os sentimentos, “pois na umidade pouco/ seu relâmpago dura”, e termina por afirmar que essa lâmina “sabe acordar também/os objetos em torno/ e até os próprios líquidos/pode adquirir ossos”.Este pode ser um começo de caminho para se descobrir o que está oculto sob a alardeada racionalidade de sua poesia.
Ferreira Gullar – Folha de São Paulo 30/09/2007 – Enviado por Iara Teixeira.