No escurinho do cinema…

Ela fazia Letras. Ele, Agronomia.

Talvez, naquela época, ela tivese uma cara tão de garota nojenta, que ele arrodeava, arrodeava, mas não criava coragem de convidá-la para sair.

Ela preferia acreditar que sua imagem fosse de alguém tão gente boa que o rapaz, por conhecer seu próprio comportamento desastroso com as mulheres, não queria estragar a amizade. Até parece! Embora, ele nutrisse sentimentos muito verdadeiros com relação a ela: queria pegar!

Um dia, o moço garrou coragem e convidou: – Vamos ao cinema!

– Vamos! E foram.

Ela estudava só pelo período da manhã. Ele, o dia todo. Para empreender o programa vespertino, ele já começava impressionando às avessas a garota, que sabia que a criatura estava matando aula.

– Qual filme? Perguntou o ansioso rapaz.

– Você escolhe, respondeu a moça.

Querendo demonstrar uma intelectualidade que nenhum dos dois possuía, ele escolheu ver no ano de lançamento “Hannah e Suas Irmãs”, do Woody Allen.

Almoçaram no Restaurante Universitário (o famoso bandejão do R.U.), que serviu no dia um sagu ao vinho Campo Largo de sobremesa, e encararam um busão biarticulado, naquela tarde de inédito sol em Curitiba, entre o Alto da Glória e o Cine Guarani, lá no Terminal do Portão.

Todas as intenções do mundo, as boas e as más, fervilhavam na cabeça do rapaz.

– O que achou? Queria saber, o infeliz ao final do programa.

Ela só lembrava de ter acordado quando o letreiro no telão já exibia o nome do diretor.

– É um Woody Allen, né? E aquilo soou como a síntese de sua crítica e avaliação do trabalho artístico. Na verdade, era quase que uma pergunta para confirmar os detalhes a serem lembrados.

Ela dormiu o filme inteirinho. Capotou! Ele, frustrado, ouviu uma hora até um ronco mais assustado dela, seguido de um apitinho suspirante e do silêncio. Até que as luzes da sala reanimaram o alvo da cobiça dele.

Anos depois ela relembrava desse episódio, contando para a filha, já adulta e curiosa por se inteirar do que a mãe havia aprontado nos idos da faculdade. Curiosidade maquiavélica, diga-se de passagem, porque a garota queria mesmo era se municiar de elementos para ter com o que barganhar no futuro e poder contar com a aquiescência materna eternamente.

– Daí, você acabou se casando com o papai. Ele também te levou alguma vez no cinema?

– Sim.

– O que vocês foram ver?

– Calígula!

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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