Noventa dias em casa

Enquanto isso, no Brasil paralelo, as pessoas são imunes ao contágio e às estatísticas

Eu e Heloisa completamos amanhã três meses de quarentena. Noventa dias em casa, sem descer sequer à portaria, sem tomar o elevador. E sem contato, exceto por vídeos, áudios e pensamentos, com as pessoas que conhecemos ou amamos.

A última vez na rua foi na manhã de 16 de março, uma segunda-feira. Como sempre, caminhamos até o Arpoador. Tomamos coco no quiosque, amigos pararam à nossa mesa e discutimos o assunto vírus. Já se sentia no ar a preocupação. Lá pelas dez horas, voltamos de táxi para o Leblon. Paguei a corrida em dinheiro —R$ 20. Foi a última cédula em que toquei. Entramos no prédio e brinquei com os porteiros, todos Flamengo, como eu. Foram as últimas pessoas com quem conversei ao vivo. Subimos, bati a porta atrás de mim e aqui estamos, à espera de, um dia, voltar à vida onde ela se passa de verdade —lá fora.

O noticiário, que acompanhamos com atenção, nos provoca duas reações. Uma, de preocupação para com as pessoas cujo trabalho as obriga a sair ou a abrir suas lojas —já que não contam com um planejamento amplo e oficial que as socorra e aos que dependem delas, e têm de se contentar com um dinheiro oferecido de má vontade e que muitos até agora nem conseguiram receber.

A outra reação é de inveja, ao ver as imagens dos calçadões, ruas, shoppings e galerias cheios de gente caminhando, correndo, pedalando, fazendo compras, empurrando carrinhos de bebê e se acotovelando em filas. Alguns de máscara, outros sem, mas todos pimpões, felizes, a salvo de contágio e imunes às estatísticas que falam de mais de um morto por minuto, a caminho dos 50 mil óbitos e do primeiro milhão de infectados. É como se fosse um Brasil paralelo, em que a Covid não existe, as mortes são de mentira e é tudo invenção da mídia.

Mas este Brasil, queira ou não, logo também descobrirá o que é ficar em casa. Muitos países já não nos querem nas ruas deles.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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