O jornalista e dramaturgo Nelson Rodrigues cunhou a expressão ‘anti-Brasil’, quando integrantes do grupo paramilitar Comando de Caça aos Comunistas invadiram os camarins do espetáculo Roda Viva — de autoria de Chico Buarque e encenado pelo diretor José Celso Martinez Corrêa —, destruindo cenários e agredindo atores e atrizes. Era janeiro de 1968, ano do fatídico AI-5.
O ‘anti-Brasil’ no qual Rodrigues se referia era aquele da interdição das falas discordantes, da perseguição sistemática a tudo que pudesse corroer os ‘bons costumes’ e a ordem ditatorial reinante. Hoje, vivemos num país comandado por militares do oficialato (e são milhares, tanto da ativa quanto da reserva, em diferentes escalões ministeriais e secretarias), essa sim, a verdadeira ‘ala ideológica’ de sustentação do governo Bolsonaro.
Destarte, a derrocada civilizatória em que nos encontramos apresenta decorrências históricas, sociais e políticas sem precedentes, rescaldo das manifestações de junho de 2013 que se consolidaram numa tormenta autoritária de extrema-direita que não nos dá tréguas. O cenário é tão burlesco e nonsense, que o ex-ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, chegou a dizer em outubro de 2020 que era muito bom que a comunidade internacional nos enxergasse como párias. E isso foi dito em alto e bom som para uma nova turma de diplomatas do Instituto Rio Branco. Não bastasse a fala calamitosa de Araújo, ainda ribomba para aqueles e aquelas que ainda têm algum discernimento sobre o que acontece nesse país, a reunião ministerial do dia 22 de abril de 2020, em que tivemos uma visão transparente das improbidades cometidas por cada ministério e a pusilanimidade de um ‘superministro’, responsável pela maior ‘barbárie judicial’ da história republicana brasileira (palavras proferidas pelo ministro do STF, Gilmar Mendes). A tragédia que se abate sobre nós ainda tem ingredientes de pura crueldade e desprezo pelas vidas alheias. No momento em que perdemos mais de 340 mil brasileiros/as para a Covid-19, o clã Bolsonaro não se compadece em relação às famílias enlutadas, alimentando um contínuo processo de denegação, que segundo a psicanalista, Maria Rita Kehl, nada mais é do que um estado de perversão inabalável que não admite restrições ao gozo individual. Os/as perversos/as que compõem os ministérios do governo do capitão reformado do exército não demonstram qualquer sinal de empatia e respeito com os/as que mais necessitam de amparo do Estado. Por tudo que fizeram e continuam fazendo deveriam estar respondendo por crimes de improbidade administrativa (no mínimo).
O vasto aparelhamento bolsonarista é, de fato, algo extremamente nocivo para a sociedade brasileira, pois o seu modus operandi é esteado pela deliberada inépcia — como acompanhamos diuturnamente na pasta da Saúde — e bravatas de cunho moral, subsidiadas pelo fundamentalismo religioso, igualmente funesto. A caquistocracia impera em todos os entes federados. Para o sociólogo Adalberto Cardoso, a “eclosão inesperada da onda de conservadorismo e autoritarismo que elegeu Jair Bolsonaro e continua respaldando seus rompantes, mistos de paranoia persecutória, sentimentalismo familiar e gregarismo primário de tipo mafioso, irracionalidade e instabilidade emocional, (…) visam a manter seus seguidores em presente estado de prontidão enquanto políticas públicas francamente antipopulares são aprovadas sem grandes atropelos pelo Congresso Nacional”.
Além disso, determinados grupos empresariais jornalísticos, corresponsáveis pelo golpe de 2016, mostram-se nesse momento fragilizados, o que não significa que tenham sido incautos ao não realizarem as devidas críticas ao governo Bolsonaro no início do seu mandato. Para a historiadora Virgínia Fontes, o governo implantado no Brasil em 2019 tem viés ‘proto-fascista’, tendo como núcleo duro do bolsonarismo a vertente ultraliberal pragmática sob a batuta de Paulo Guedes, e a teologia da prosperidade, representada pela vertente reacionária neopentecostal. Aliás, segundo Fontes, os ministérios do governo Bolsonaro foram implantados de maneira autocrática e sob a autoridade direta do capitão reformado do exército, com influência de seus filhos, Paulo Guedes, Olavo de Carvalho, Onyx Lorenzoni (que ocupava a pasta da Casa Civil), Gustavo Bebianno (que ocupava a secretária-geral da Presidência e que, antes de falecer, se desentendeu com o clã Bolsonaro) e Sergio Fernando Moro (ex-ministro da Justiça e agora desafeto de Bolsonaro e dos/as bolsonaristas, profundamente implicado no favorecimento eleitoral do capitão reformado do exército em 2018). Por fim, a historiadora assevera que Bolsonaro não teve qualquer oposição da mídia hegemônica burguesa tradicional ou dos grupos empresariais jornalísticos. Muito pelo contrário. Houve um profundo silenciamento nos editoriais da mídia hegemônica, notadamente em 2019, sobre a gravidade de seus pronunciamentos contra os direitos humanos e sociais e contra o meio ambiente, ou seja, uma adesão tout court à cartilha ultraliberal de Guedes.
Pesa ainda sobre esses grupos empresariais jornalísticos, como é o caso das Organizações Globo, o conluio com o lavajatismo, posicionando tal operação como pretensa paladina da retidão e do combate à corrupção que, como já se sabe amplamente, deturpou-se numa farsesca e criminosa ação de lawfare!
Isso também se evidencia no manifesto sobre tratamento precoce contra a Covid-19 (sem nenhuma comprovação científica) que a Associação Médicos pela Vida com sede em Recife/PE pagou para publicar em vários jornais do país, dentre eles o jornal Folha de S.Paulo, justamente no momento em que mais de 250 mil brasileiros/as haviam perdido a vida. Tal associação aliada ao bolsonarismo ganhou espaço relevante num jornal que, em princípio, deveria combater tais medidas ineficazes contra a Covid-19. A ombudsman da Folha de S.Paulo, Flavia Lima, fez a seguinte ressalva em relação a essa questão: “No jornalismo profissional, a independência econômica é condição essencial para a liberdade de informar. Em nome da integridade da informação, a busca pela autonomia se dá sob um princípio claro, o da separação entre conteúdo editorial e comercial: repórter não vende anúncio, assim como contato comercial não interfere na reportagem”. Deveria ser um princípio moral e ético desse grupo empresarial jornalístico, mas o manifesto foi publicado mesmo assim.
O que vem ocorrendo no Brasil nos últimos anos está longe de ser algo comparável ao que conhecemos por ‘agenda civilizatória’. São inúmeros os crimes praticados pelo governo Bolsonaro, mas nada parece impedi-lo ou interditá-lo. Não seria exagero afirmarmos que Bolsonaro já cometeu em dois anos de governo crimes de lesa-pátria e de lesa-humanidade ou, eufemisticamente, atentados contra a ordem constitucional. A cultura autoritária nesse país desde o período colonial, como bem nos aponta o historiador Daniel Aarão Reis, ou a sociabilidade violenta, como nos aponta o sociólogo Adalberto Cardoso, permanece com tintas fortes até os dias de hoje por meio de práticas clientelísticas, patrimonialistas e patriarcais, além das chagas da escravidão que se manifestam no racismo estruturante, além da inevitável luta de classes que, por seu turno, denota a inconciliável harmonia entre capital e trabalho superexplorado (precarização).
Tento encontrar um Brasil diferente do que vislumbro. Todavia, os retrocessos históricos que vêm ocorrendo sistemática e deliberadamente no Brasil nos últimos anos, especialmente com o golpe ocorrido em 2016, com o apoio inconteste da mídia hegemônica tradicional, parlamento, judiciário, empresariado bolsonarista, fundamentalismo religioso, militares com/sem pijama e setores profissionais da classe média, comprovam que as crises cíclicas do capital podem prescindir sem qualquer pudor da democracia liberal e alçar ao poder personalidades sociopatas. Contudo, a ascensão da extrema-direita é um fenômeno de contornos globais, algo jamais visto desde a década de 1930. De fato, a partir de 2008, o capitalismo ingressou em mais um período de crise sistêmica, ainda que se saiba que as crises do capital não representem nenhuma novidade, já que são basilares do modo de produção vigente. O que se configura, contudo, em tal conjuntura, num país capitalista de desenvolvimento desigual e combinado como é o caso do Brasil, é o cariz extremamente autoritário com que o capital e frações da classe burguesa procuram responder à crise. Uma escalada autoritária e persecutória especialmente por meio das fake news, já que esse último elemento vem se propagando de maneira assustadora incitando o medo, o ódio, a mentira contumaz (mitomania) e ataques frequentes à classe trabalhadora nas redes sociais.
Para um cenário desalentador com questões igualmente complexas, as resoluções e/ou alternativas não serão nada fáceis. Há todo um país para se reconstruir! E não esqueçamos, historicamente, que estão na contabilidade da mídia hegemônica as centenas de milhares de vidas perdidas no Brasil!