O aviso sempre ignorado

“São as vivandeiras alvoroçadas que vêm aos bivaques bulir com os granadeiros e causar extravagâncias ao poder militar”

A frase é histórica e tem autor: foi dita pelo general Humberto de Alencar Castello Branco, chefe do estado maior do Exército no começo de 1964. Ele viria a ser o primeiro presidente da ditadura militar, mas nessa época condenava as agitações de conspiradores civis contra o governo João Goulart. Castello não queria afastar, mas conter, os agitadores: nessa época, no cargo que o impedia de fazer política, o general já conspirava, visto como uma liderança do golpe que se avizinhava.

As vivandeiras compunham um espectro amplo, que ia desde os empresários agrupados no IBAD, Instituto Brasileiro de Ação Democrática, coligado à CIA, parcialmente financiado por esta. IBAD/CIA elaboravam, com técnicos e intelectuais renomados, a ideologia do golpe; eram empresários, profissionais liberais e políticos, na maioria vindos desde a oposição a Getúlio Vargas, de quem Jango era herdeiro político; era a classe média revoltada com a emergência do populismo (cf. Renê Armand Dreyfuss, 1964: A Conquista do Estado).

Os civis, como ao tempo do governo constitucional de Getúlio, queriam apenas mudar as lideranças civis. Foram atropelados pelos militares, que pela cultura da Guerra Fria, consolidaram sua ditadura em seis presidências, incluído o triunvirato que dirigiu o país no AVC de Costa e Silva, após impedir a posse de seu vice civil, Pedro Aleixo. Na época, é inevitável a comparação com a ditadura dos coronéis, que derrubou o governo civil da Grécia em aliança com o rei Constantino, mais tarde destronado no retorno da democracia.

O que aconteceu desde então, na visão deste que viveu aqueles tempos e até hoje tenta compreender o Brasil? A queda do muro e a perestróica, aliados à falência do regime, trouxeram a democracia de volta. Os militares recolheram a obsequioso silêncio, só interrompido quando sentiam necessário exercer a histórica tutela da nação (que a estimula, porque impedida de amadurecer pelos regimes civis e sua corrupção crônica e endêmica). A histórica desconfiança com os casacas pelos militares vem desde o Segundo Império.

Nesta semana o Insulto ensaiou elogio aos militares, não pela tutela, mas pelo esforço em não reeditá-la no molde das ditaduras que apoiaram e instituíram no Brasil; o ensaio veio porque os militares têm tentado tangenciar os apelos por um novo golpe, tanto por parte de Jair Bolsonaro quanto de civis, tanto quanto patéticos populares que, financiados ao longe por empresário da rapina, bandeiras na mão, não sabem contra o que protestam, quanto pelas classes médias nutridas do ódio alimentado aos desatinos dos governos petistas.

Todos estes – absolvendo-se pela circunspecção os adversário de Bolsonaro -, todos eles e tudo isso no amálgama difuso e confuso, que pela primeira vez na história do Brasil forma a corrente que confunde civilidade com patriotismo. Um parêntese sobre os militares, que parecem também confusos, em crise de identidade: não deram o golpe, mas ensaiam sinais de simpatia contra aqueles que o exigem. Vide sua sugestiva resistência ao poder demonstrado pelo presidente do TSE aos atos de insuflá-los contra as urnas.

Os militares não digerem a atuação do magistrado contra a anarquia do bloqueio das estradas. O magistrado ocupou o vazio da omissão militar no dever de preservar a segurança nacional, ameaçada pelos atos. Daí a recente nota que lançaram, sempre cabalísticas porque para consumo da tropa e para hermeneutas civis. Nelas, com dubiedade preocupante, não recriminam a anarquia dos caminhoneiros e manifestantes; ao contrário, enaltecem-nas como liberdade de manifestação – e tibiamente pedem respeito à ordem, que os revoltosos não respeitam.

Os militares continuam devotos a uma constituição que só eles conhecem, entranhada em seu inconsciente coletivo desde a Guerra do Paraguai. Os simpatizantes do golpe, não há como fugir da comparação, evocam a imagem da ralé, na acepção sociológica formulada por Hannah Arendt (Origens do Totalitarismo, obra seminal sobre a emergência do nazismo na Alemanha): o conjunto de pessoas de origens e antecedentes não só díspares como, em circunstâncias normais, antagônicos, que se aliam em projeto de desconstrução social.

Castello, visto com despeito por alguns contemporâneos de caserna porque cursou academia militar francesa e foi expoente da Escola Superior de Guerra, era homem culto, amante de teatro e literatura, tinha suas tinturas de sociólogo, reforçadas na formação profissional, iniciada nos anos 1920, mais tarde comandante de atuação brilhante na campanha da Itália, na II Guerra Mundial. Castello conhecia as causas e consequências das “vivandeiras alvoroçadas” que rondam os bivaques, os aquartelamentos militares.

Como os caminhoneiros que ocupam estradas e os desatinados que se adonam da Bandeira para estimular a quebra da estabilidade constitucional. O presidente perdeu a batalha de sua vida, passar a presidência para liderança civil, o deputado Bilac Pinto (cf. Castello, Lira Neto)  Caminhões civis bloqueiam desde a eleição de Lula a entrada do QG do Exército em Brasília. São as vivandeiras de novo. Como na comparação batida e centenária, começaram na tragédia e agora encenam a farsa. Falta um Castello no Exército.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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