O banal tapa na cara

A bofetada entre dois homens deve ser a próxima atração dos nossos canais de luta

Nelson Rodrigues dizia que o pior na bofetada é o som: “Se fosse possível uma bofetada muda, não haveria ofensa nem humilhação, nada”. Como não é assim, Nelson observou que “a partir do momento em que alguém dá ou apanha na cara, isso inclui, implica e arrasta os outros à mesma humilhação”. E decretava, bem à sua maneira: “É melhor ser esbofeteado do que esbofetear”.

O cinema é um contínuo festival de bofetadas com fins dramáticos, mas nenhuma mais importante do que a de “No Calor da Noite” (1966): Larry Gates, branco e autoritário, esbofeteia o detetive negro Sidney Poitier. E —surpresa!— Poitier o esbofeteia de volta. Nunca se vira isso num filme. E, na entrega do Oscar em 2022, Will Smith atravessou o auditório para esbofetear o apresentador Chris Rock por uma piada sobre sua mulher. A ideia era humilhá-lo na TV ao vivo, para milhões.

Esta é a palavra: humilhação. Quando um policial mete o pé na porta de um barraco e entra aos gritos e de mão aberta contra o rosto do morador, o objetivo é humilhar, desmoralizar, rebaixar a pessoa ao subumano, para lhe mostrar quem manda. Uma câmera no capacete ou na farda do meganha talvez reduzisse o índice de bofetadas em quem não pode se defender —porque não as vemos aplicadas nos que se defendem com um fuzil ou metralhadora.

Assisti por acaso outro dia, pela televisão, a um novo tipo de luta: o tapa na cara. Um homem imóvel se deixa esbofetear violentamente por outro e, se continuar de pé, é a sua vez de fazer o mesmo. Cada tapa parece quase arrancar a cabeça do estapeado, e eles se alternam até que um desmaie. Seu principal promotor, Dana White, o tubarão do UFC, já conseguiu legalizá-lo nos EUA como um “esporte”. Deve ser a próxima atração dos nossos canais de luta.

É a banalização da bofetada —o tapa na cara subitamente instituído como uma nova forma de expressão entre nós, os humanos.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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