O cartum caiu em (des)graça?

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A coisa está preta igual a nanquim. Recentemente até nosso mestre e cartunista-mor, Sérgio de Magalhães Gomes Jaguaribe, o Jaguar, afirmou que o cartum está indo pro brejo. Reclamou que ninguém mais publica esse tipo de desenho de humor, que ele mesmo, se quiser continuar trabalhando, precisa se travestir de chargista. Disse mais: só a New Yorker ousa manter o cartum em suas páginas e que a terra (que, diga-se de passagem, parece que encontrou um planeta similar bem longe daqui) está ficando sem graça nenhuma.

Antes de mais nada é preciso esclarecer a situação pela milésima vez: cartum é aquele tipo de humor gráfico que brinca com situações universais. Seu conteúdo será entendido tanto pelo seu vizinho como pelo cidadão de Pequim. A charge, expressão francesa erroneamente utilizada para designar ilustração em geral, se origina, como a caricatura, do termo caricare, que em síntese quer dizer “carregar nas tintas”. Sua função é contemplar figuras públicas e lhes exagerar os traços, fazer a crítica de situações políticas específicas, ou de cenários mais amplos, como a atuação dos EUA no Iraque.

Voltemos à vaca fria: a questão da agonia do cartum não é novidade. Lembro-me de que, lá pelo fim do governo Collor, fui convidado para uma exposição de humor e um debate em Buenos Aires, no Centro de Cultura La Recolleta. No encontro dos vários desenhistas latino-americanos, essa questão foi o tema central. E eis que o assunto retorna 15 anos depois. Muita água passou por debaixo da prancheta, até a revista Punch, uma das bíblias do humor, falecer nos braços do milionário Mohamed al Fayed (o quase sogro da princesa Diana) que, após investir 25 milhões de euros na revista e não ver retorno, resolveu fechar a tampa do caixão em 2002 .

Recordo que uma das respostas para a dificuldade de sobrevivência do cartum é que as instituições políticas e a economia eram muito instáveis aqui nestas plagas e exigiam atenção constante. Não nos sobra espaço para rir de coisas universais. Nossos políticos estão sempre aprontando. Muitas vezes se transformam até em concorrentes – só que amadores. Outra razão é a triste mania latino-americana chamada ditadura militar, que assolou o continente no século passado e também obrigou os desenhistas a usar uma forma de humor combatente, de resistência. O público se acostumou com a charge e a sátira política. Com o advento da democracia, o escracho veio à tona, a situação ficou complexa, com o desaparecimento do inimigo de farda. Então, surgiram vários novos monstros no horizonte.

Convenhamos: a corrupção corroeu tudo e a realidade se tornou tão violenta e irracional que até o exercício do humor ficou difícil na seara da charge. Como fazer graça com balas perdidas que ceifam vidas a torto e a direito? Por outro lado, a nossa sociedade doente, coitada, está tão anestesiada, acostumada à banalidade da banalidade do mal, ao escracho ético, que exige um tratamento de choque por parte dos chargistas. Desse jeito, cai-se fácil na escatologia. Para piorar – lembrou Jaguar – a praga do politicamene correto contribuiu em muito para a atual sem-graceza do mundo. No fim das contas, cartum virou gênero que só se encontra em Salões de Humor.

Sem dúvida, o predomínio da realidade empobreceu a sensibilidade da moçada. Pode ser que um dia haja um revival. Afinal como dizia o Barão de Itararé: “De onde nada se espera, daí é que não sai nada mesmo”. Uma opção para salvar a lavoura é migrar para a internet: I tube, you tube, nóis tube. Pode-se inventar um reality cartoon?

Para botar um borrão final nesta cascata, que se louve a Desiderata (rimou!) e a L&PM, que estão investindo na publicação dos nossos cartunistas históricos e até de alguns da nova safra. O cartum morreu? Viva o cartum!

Bruno Liberati é cartunista, chargista e blogueiro. É também sociólogo e, nas horas vagas, vira uma laje em Pindaíba do Norte. 

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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