O censor em mim saúda o censor em você

Basta um erro ou mesmo um deslize para que uma pessoa seja massacrada por milhões de outras

Quase não escrevi este texto. Quando me ocorreu colocá-lo no papel, uma vozinha esganiçada, que escuto desde criança, disse: vai ficar uma merda. Outra voz, mais grave, emendou: assunto batido. Uma terceira: que nada, assunto bacana. Uma última: vai que tá ótimo.

Gosto do nome que o povo tolteca usava para designar esse conjunto de vozes na nossa cabeça: mitote. Condição constante da mente humana, essa polifonia do ego pode se tornar enlouquecedora nos momentos que as vozes negativas se sobrepõem, em número e estridência, às incentivadoras.

Levei décadas de terapia para equilibrar o meu coro. Há alguns meses, sofri um linchamento por parte da extrema direita e meus barítonos da autocensura, que andavam sumidos, voltaram a falar. O volume logo baixou —certas vozes internas não podem ser levadas a sério— mas, desde então, venho pensando na natureza desse fenômeno pernicioso e no quanto isso tem afetado a sociedade como um todo.

Dando aulas de escrita criativa, eu já vinha percebendo. Professora, será que posso escrever sobre esse assunto? Tudo bem fazer essa piada? Será que vai pegar mal eu falar disso sendo homem? Se isso é o que os alunos me perguntam, depois de pensar e levantar a mão, imagine o que se passa por aqueles mitotes.

Claro que um certo cuidado é bem-vindo, mas não o estado de paranoia em que o ambiente digital nos colocou. O mundo, desde que é mundo, é controlado por tribunais tribais, onde o linchamento, físico ou moral, sempre existiu, mesmo depois do surgimento da justiça. A novidade está na escala que isso vem ganhando. Se antes era circunscrito a uma comunidade, agora é a toda a internet. Basta um erro, uma calúnia ou mesmo um deslize para que uma pessoa seja massacrada por milhões de outras. Às vezes por um país inteiro. Ou parte do mundo. O resultado disso é óbvio: as pessoas estão com medo. E o medo aumenta o volume do nosso censor.

É preciso admitir que o censor tem suas utilidades. Não fosse ele e sairíamos apertando as primeiras nádegas gostosas que vemos pela frente. Ou diríamos para o sorumbático vizinho: como você anda acabado ultimamente. O problema é quando essa voz cresce demais, a ponto de se tornar única, fazendo do censor o autocrata do mitote. E a autocracia, no governo de um país ou de uma mente, é um inferno.

No caso dos artistas —aqui falo pela minha categoria, como escritora—, o censor no comando paralisa o nascimento de qualquer ideia, que morre sem nem tingir o papel. Como vamos produzir arte com tanto medo de errar?

Em um texto recente, Chimamanda Ngozi Adichie diz que “nenhuma empreitada humana requer tanta liberdade quanto a criatividade. Para criar, é necessário que a mente possa vagar a esmo, ir a nenhum lugar, a qualquer lugar, a todo lugar. É desse ondular que surge a arte”. Vou além, dizendo que não só a arte, mas diversas soluções para questões cotidianas e também para grandes questões, como essa mesma, da autocensura, pela qual estamos passando.

O censor que habita em mim convida o censor que habita em você para dar um tempo para a cabeça. Precisamos de liberdade para viver com plenitude e para enfrentar esses tempos.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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