Aqui nem Deus dá jeito

Tendo entendido que era a hora de mudanças no Brasil, o Senhor chamou o brasileiro Noé da Silva e disse-lhe: “Dentro de seis meses, farei chover ininterruptamente durante 40 dias e 40 noites, até que todo o Brasil esteja coberto pelas águas. Os maus serão destruídos, mas quero salvar os bons e justos e um casal de cada espécie animal. Vai e constrói uma arca de madeira”.

No tempo certo, os trovões deram o sinal e os relâmpagos cruzaram o céu.

Noé da Silva, ajoelhado no quintal de sua casa, chorava, quando ouviu, novamente, a voz do Senhor, que soou furiosa, entre nuvens:

– Noé da Silva! Onde está arca?!

– Perdoe-me, Senhor – suplicou o bom homem. Fiz o que pude, mas encontrei dificuldades imensas para cumprir a tarefa que me atribuístes. Primeiro, tentei obter uma licença da Prefeitura para a construção almejada, mas, para isso, além das altas taxas para obter o alvará, ainda me pediram uma contribuição para a campanha. Não dispondo do dinheiro, recorri aos bancos e não consegui empréstimos, mesmo submetendo-me a taxas de juros de 13% ao mês.

Prosseguiu Noé:

– Depois, o Corpo de Bombeiros exigiu-me um sistema de prevenção de incêndios, que consegui contornar subornando um funcionário. Só que, aí, começaram os problemas com o Ibama para a extração da madeira. Eu disse a eles que eram ordens Vossas, mas não houve jeito. Eles queriam saber se eu tinha um tal de “projeto de reflorestamento” e um tal de “projeto de manejo”. Eu ainda tentava descobrir do que se tratava, quando o mesmo Ibama descobriu uns casais de bichos que eu estava reunindo aqui no quintal. Além de aplicar-me uma pesada multa, o fiscal ainda falou em “prisão inafiançável”, e eu acabei tendo de matar o infeliz, pois para o crime de morte a lei é mais branda.

E Noé continuou falando ao Senhor:

– Aí, tentei começar a obra. Mas apareceu o CREA e taxou-me porque eu não tinha um engenheiro responsável pela construção. Depois, veio o pessoal do sindicato, exigindo que eu contratasse seus marceneiros, com garantia de emprego por um ano e demais encargos trabalhistas, fiscais e previdenciários. Como se não bastasse, chegou a Receita Federal falando em “sinais exteriores de riqueza”, e também me multou. Finalmente, chegou a turma da Secretaria de Meio Ambiente e pediu-me um “Relatório de Impacto Ambiental” sobre a área que seria inundada. Mostrei-lhe o mapa do Brasil. Então, decidiram internar-me num hospital psiquiátrico.

Noé terminou o relato ao Senhor aos prantos. Mas notou que o céu clareava.

– Senhor – indagou – não vais mais destruir o Brasil?!

– Não – respondeu-lhe a voz entre as nuvens. Pelo que ouvi de ti, Noé, cheguei tarde demais. Alguém já se encarregou de fazer isso!

Ah, Senhor! Manda aquela chuva e esquece da arca!

P.S. – O conteúdo do acima revelado não foi descoberto nos manuscritos do Mar Morto, mas nas cavas da internet. Já publiquei aqui, mas deu-me vontade de repetir. Com a minha homenagem ao autor desconhecido.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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