O dia em que tomei cloroquina

Leio no Zé Beto matéria postada em 22/01/2022, às 16:36, que o “Ministério da Saúde defende hidroxicloroquina e diz que vacina não funciona”. Como o Brasil é um país onde o passado não passa, segue um texto que escrevi em 2021, durante o auge da pandemia, esclarecendo aos navegantes que bem sei que hidroxicloroquina e cloroquina são medicamentos diferentes, mas sistematicamente recusados pelas emas que vivem no Palácio da Alvorada.

Há mais ou menos 15 anos, estava, como minha esposa, de férias num hotel do interior do norte do Brasil. Num dia, acordei passando muito mal, febre altíssima, dor no corpo e dificuldade para andar. Raquel conseguiu com o atendente do hotel a informação e um carro para nos levar ao Postinho de Saúde na sede do município, 7 km distantes do hotel. Chegando no Postinho, a atendente de enfermagem me fez algumas perguntas, tirou a febre, colocou uma fita vermelha no meu pulso e disse: “O senhor tem prioridade máxima. Assim que o doutor terminar o atendimento que está realizando será chamado”. Assustado, sentei na espera junto com outros pacientes, todos pobres, peles enrugadas pelo calor inclemente, gente que trabalha de sol a sol, enfim, a força do sertanejo de que nos falou o grande Euclides da Cunha.

O Postinho era numa casa e a grande sala em que estávamos não tinha divisória. Na frente, um biombo separava o médico e o paciente atendido dos demais. No fundo da sala, sem qualquer biombo, duas camas médicas arrumadas. Tudo simples, pobre, mas muito limpo e digno.
Saindo o paciente que estava atendendo, o médico chamou: Paulo Roberto. Fui até ele e narrei o que estava acontecendo.

Nas primeiras palavras do médico, senti que ele era um humanista que amava o que fazia. Disse que eu havia perdido, pelo sol muito forte e por ser do Sul, muito líquido e provavelmente estava desidratado. Iria me colocar no soro por duas horas e mandar colher material para exame, além de me dar um antitérmico na veia. Afinal, disse baixinho, havia boato de que um surto de malária assolava a região. A atendente de enfermagem colheu o material e me pôs numa cama do fundo da sala e aplicou o soro e o antitérmico.

Enquanto isso, percebi que Raquel entabulava conversa com uma senhora que estava na espera. Passei a prestar atenção. A senhora disse que estava com a filha grávida para o doutor examinar. A menina, segundo a senhora, tinha 13 anos. O pai, 16, pescador e “muito trabalhador”. Esperavam um menino. Disse que, além da grávida, tinha outros 4 filhos e que o marido tinha ido pra Brasília “tentar a sorte”, e nunca mais deu notícias. Comentou que ganhava a vida plantando mandioca numa terrinha de que tinha escritura. Tudo legalizado. Quando sobrava um dinheirinho comprava um peixinho e comiam com pirão.

Duas horas depois, já bem melhor, o doutor me deu alta e disse: “preventivamente, compre este remédio na farmácia da cidade e tome um comprido a cada 6 horas”. Comentou comigo, acho que simpatizou, que havia clinicado a vida toda em Recife e aposentado e com os filhos criados resolveu viajar com a esposa pelo Brasil. Se apaixonaram pelo lugar, pela praia, compraram uma casa e ali viviam felizes. Disse que, com o passar do tempo, estava se sentindo um inútil por ficar o dia inteiro na beira da praia com tanta gente precisando de médico que não existia na cidade. Foi quando o prefeito estava para inaugurar o Postinho e abriu concurso para contratar o primeiro médico do município. Se inscreveu, e como foi o único candidato, foi aprovado e nomeado e desde então entrava às 8 da manhã no Postinho e não tinha hora para sair.

Disse que meus exames iriam para o Laboratório na Capital e que voltasse no outro dia, depois das 14, quando os mesmos retornariam. Na ida pro hotel, o motorista parou na farmácia e minha esposa comprou o medicamento. Lembro que ela comentou que tinha custado 5 ou 6 reais. Cheguei no hotel e peguei o comprido para tomar, achei pitoresco o nome do remédio: cloroquina.

No outro dia, já bem melhor e sem qualquer sintoma, retornei ao Postinho. O doutor falou que meus exames tinham dado negativo prá malária. Disse que tinha sido desidratação mesmo. Mandou tomar uns 3 litros de água de coco por dia. Quando eu ia saindo, disse: “Nunca mais tome a cloroquina, ela tem efeitos colaterais graves!” Como estava com a caixa dos comprimidos da tal cloroquina no bolso, dei para ele e disse que outro paciente poderia necessitar. Ele agradeceu e eu fui para o hotel.

Desde que o Bozo e os bolsominions começaram com o assunto da tal cloroquina, a história não me sai da cabeça.Fico me perguntando: o doutor ainda clinica? Está na linha de frente da pandemia? Muita gente já foi contaminada na cidadezinha? Quantos morreram? O bebê nasceu? Sobreviveu à mortalidade infantil? Está na escola? Ou é pescador que nem o pai ou vendia picolé na beira da praia antes da pandemia? A mãe teve outros filhos? O pai continua lá pescando ou também foi para Brasília tentar a sorte e nunca mais deu notícias? A avó é viva? Conseguiram levantar na Caixa o auxílio emergencial?

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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