O direito constitucional do quase

Segundo Nelson Rodrigues, o diálogo entre brasileiros é sempre fatalmente um monólogo – o interlocutor não existe. Se isso acontece com todo mundo, muito mais com os poderosos. O Presidente da República é o que menos vê e o que menos ouve.

O Brasil é um país que exige mais, muito mais, do que meia coragem das meias soluções. É que somos mestres em resolver nossas urgências com adiamentos. Há problemas que não podem esperar 15 minutos – e nós transferimos de geração para geração. (1)

Assim, somos o país do quase, esbarramos em estadistas que não são estadistas, em heróis que são quase heróis e quase fazemos as coisas vitais – e realmente nunca as fazemos. (2)

O “rouba, mas faz” tem na sua essência no quase honesto, pois rouba, mas faz. (3)

Temos também “o ruim com ele, mas pior sem ele” e tantos outros provérbios populares na mesma senda.

Some-se a tudo isto a nossa herança de violência do Brasil Colonial: de governantes que maltratavam seus governados, de maridos que maltratavam suas esposas, de senhores que puniam violentamente os seus escravos, de salteadores que atacavam e feriam viajantes nas estradas. (4)

Neste cenário de violência e de soluções intermediárias, apelar para o jeitinho é pedir para a compreensão, para analisar a situação que é diferente da normal, para dar uma solução diferente do que prevê a norma.

O direito tem o jeitinho como uma categoria fundamental, mas poucos admitem isto.

Nos momentos de não enfrentamento das crises, que são comuns à tibieza das instituições brasileiras, é o jeitinho que se faz, triunfalmente, presente.

A norma constitucional prevê garantias e proíbe condutas, mas na hora da sua aplicação, faz-se necessário o jeitinho, para burlar o que ela originalmente previu.

Cria-se a ilusão ou fantasia jurídica de que não é bem isto que a norma quis dizer – e assim afasta-se a sua incidência.

Temos uma sociedade violenta, na qual as leis e as instituições são, ora rígidas, ora frouxas, dependendo dos interlocutores, das situações e das classes sociais envolvidas.

Uma Constituição e uma República do quase.

Um presidente, que diz uma coisa e faz outra – e vice-versa; um Supremo e o Congresso que não enfrentam tais erraticidades e fingem que a Constituição não quis dizer bem isto.

O Ministério Público Federal investiga passeatas que pretendem um novo AI 5 com o fechamento do Judiciário e do Legislativo, mas o personagem principal não será investigado.

Em movimentos profundamente contraditórios, ignora-se a gravidade da Pandemia. A Constituição, o direito à saúde pública e o direito à vida tornaram-se um quase constitucional. 

Referências:

1.RODRIGUES, Nelson. O reacionário: memórias e confissões. Rio de Janeiro: Record, 1977, p. 86-86.

2. RODRIGUES, ___, p. 87-88.

3. BARBOSA, Lívia. O jeitinho brasileiro: a arte de ser mais igual do que os outros. Rio de Janeiro: Elsevier, 2006, p. 55.

4. SILVA, Maria Beatriz Nizza. Vida privada e quotidiano no Brasil: na época de D. Maria e D. João VI. Lisboa: Estampa, 1995, p. 307.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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