O Direito de Impunidade

Mas, cá entre nós, o presidente também poderia usar esse termo – “direito de ausência” – para justificar suas ações e omissões em três anos de governo. E, quem sabe, expandi-lo; lhe cairia bem, por exemplo, o “direito de ignorância”, o “direito de grossura”, o “direito de intolerância”, o “direito de negacionismo”

Confesso, minha paciência esgotou-se. Já usei todos os adjetivos possíveis para defini-lo e tinha decidido não mais falar a respeito desse degenerado presidente. Não vale a pena, pensei. A batalha tem sido inglória. Há três anos, e mesmo diante de todas as barbaridades cometidas, ele permanece no cargo com a complacência do Congresso e a hesitação da Justiça. É melhor deixá-lo quieto na solidão sinistra do Planalto. Restam apenas nove meses para a eleição que irá nos redimir. Concentremos nossas forças e nossas esperanças no resgate do verdadeiro Brasil, não este que aí está, envolto em preconceito, retrocesso, obscurantismo, ignorância, arrogância, perversidade, descompaixão.

Mas eis que o homem voltou a atacar. Desafiou o Supremo Tribunal Federal ao não cumprir uma determinação judicial assinada pelo ministro Alexandre de Moraes. Simplesmente não compareceu à Polícia Federal para o interrogatório em que teria de explicar como teve acesso aos dados sigilosos do inquérito da PF sobre o ataque aos computadores do Tribunal Superior Eleitoral. Não só teve acesso, como distorceu e divulgou esses dados na campanha descabida que fazia contra o voto eletrônico. Moraes foi flexível quanto às datas, aos prazos e à forma do depoimento – foi o presidente quem decidiu pelo presencial. Bolsonaro protelou o que pôde e, no final, arrependido, alegou cínica e covardemente que exerceria o “direito de ausência” quanto ao comparecimento àquilo que, em carta ao STF, considerou uma “solenidade”.

Alguns juristas defenderão: é válido o subterfúgio. Os mais sensatos responderão: é acintosamente vergonhoso. E pergunto: qual o cidadão brasileiro que, envolvido num inquérito policial, pode se recusar a cumprir uma ordem judicial, alegando “direito de ausência”? Bolsonaro sentiu-se nesse direito, desrespeitou o Supremo e certamente vangloria-se da impunidade – o inquérito da Polícia Federal, embora parcial, diz que o presidente teve “atuação direta, voluntária e consciente” na prática do crime de violação de sigilo funcional. Mas, cá entre nós, o presidente também poderia usar esse termo – “direito de ausência” – para justificar suas ações e omissões em três anos de governo. E, quem sabe, expandi-lo; lhe cairia bem, por exemplo, o “direito de ignorância”, o “direito de grossura”, o “direito de intolerância”, o “direito de negacionismo”.

Não nos esquecemos que, dois anos atrás, em fevereiro, um homem de 61 anos chegava de uma viagem à Itália trazendo a doença sem saber. Foi o primeiro registro do novo coronavírus no Brasil. No mês seguinte, aconteceu a primeira morte. De lá para cá, mais de 625 mil brasileiros perderam a vida pela incúria de um governo criminoso que até hoje faz campanha contra a vacina e prega a adoção de medicamente comprovadamente ineficazes e perigosos.

De lá para cá, também, o Brasil teve quatro ministros da Saúde. O último deles está há 10 meses no cargo. Controverso, atrasou e criou dificuldades para a vacinação das crianças e não consegue convencer o presidente de que a hidroxicloroquina não vale nada para combater a Covid-19. Parece se equilibrar entre a ciência e o negacionismo e diz que quer entrar para a história como o homem que acabou com a pandemia. Não, não é piada.

Melhor seria explicar por que mais de 30 milhões de doses da vacina da Jansen continuam guardadas num galpão em Guarulhos, Grande São Paulo; o que gerou o apagão de dados do Ministério da Saúde; o que provocou a falha técnica que invalida o passaporte vacinal; e o que ele pensa da brilhante ideia da colega Damares. A ministra, também capacho de Bolsonaro, propôs disponibilizar o “Disque 100”, disque-denúncia do governo federal, para receber reclamações de pessoas que se sintam discriminadas por serem contra a vacina. Não, não é piada também.

Enquanto isso, o tempo fecha no Planalto. As últimas notícias não soaram nada agradáveis aos ouvidos de um presidente cada vez mais distante da reeleição Elas dão conta de que: 1) integrantes do Centrão – aquele bloco de políticos alugáveis para qualquer finalidade – já pensam em desembarcar do bolsonarismo; 2) o WhatsApp firmou parceria com o TSE para criar um canal de denúncias de disparos em massa de mensagens na plataforma; 3) a Justiça Federal do Distrito Federal arquivou a ação contra Lula sobre o tríplex do Guarujá, caso responsável pela condenação do petista em 2018 e que o tirou das eleições; 4) o Brasil perde duas posições e ocupa o 96º lugar no ranking mundial de percepção de corrupção; 5) a inflação continua em alta, a gasolina dispara nas bombas e o brasileiro bate recordes de inadimplência; o país fechou 2021 com 63,9 milhões de devedores, 2,6 milhões a mais do que em 2020. É melhor mesmo ir para a Rússia. E ficar por lá.

Fim de papo, com uma aula de francês do ex-juiz e ministro Sergio Moro: “Para quem não entendeu, juge é juiz, voleur é ladrão”– ah, bom; uma pergunta: a Procuradoria Geral da República fechou? Está em greve? E uma boa notícia: Portugal continua socialista!

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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