O folgado e o ilunga

Cada língua tem sua dúzia de palavras intraduzíveis. A palavra ilunga, do banto, está no topo de qualquer lista. Significa: “pessoa disposta a perdoar quaisquer maus-tratos pela primeira vez, a perdoar pela segunda vez, mas nunca pela terceira”. Pode não parecer, mas a palavra é sábia -e útil. Perdoar é fundamental, dar uma segunda chance também, mas a terceira é idiotice. #JeSuisIlunga

Outro dia me vi tentando explicar a um amigo gringo o significado da palavra folgado. “O folgado é um malandro?”, perguntou o gringo. Sim, mas não. (Lembro do Noel: “Proponho ao povo civilizado/ não te chamar de malandro/ e sim de rapaz folgado”.) A palavra malandro está entranhada de um certo carisma, graças aos sambas do Moreira da Silva e aos filmes do Carvana.

O folgado não tem samba: é o esperto sem malandragem, o malandro sem carisma -mas tampouco é o mal educado. Não tente reduzir, ao explicar para o gringo, o folgado a uma pessoa sem educação. O mal educado erra por ignorância, enquanto o folgado sabe exatamente o que está fazendo, e não está nem aí. O malandro também sabe, mas faz para se dar bem. O folgado não: folga porque acha que tem direitos.

O mundo se divide em dois: os que acham que nasceram devendo algo ao mundo e os que acham que o mundo lhes deve algo. O folgado se encaixa na segunda categoria. Mais do que isso: o que o define como ser humano é a certeza de que a vida lhe deve mundos e fundos. Junte a dívida da Grécia com a do Eike: isso é quanto você deve ao folgado. E ele vai cobrar com juros. Não tem moratória, não tem oxi, não tem Syriza.

Você marca uma festa às 9h. O folgado liga às 11h. Você atende o celular, equilibrando cinco quilos de gelo numa mão e 12 latas de cerveja na outra. O folgado quer saber onde é que ele estaciona o carro. Você, que se encaixa na primeira categoria, desce de elevador, ajuda o folgado a encontrar uma vaga, enquanto ele pergunta: “Como é que tá a festa? Quem já chegou?” -o folgado adora perguntar quem está, quem já chegou, e quando você vê já entrou no jogo dele: começa a dizer que ele vai gostar da festa, pede desculpas por qualquer coisa, tira o seu celular do carregador para colocar o dele, faz a cama para o folgado porque ele bebeu demais, no dia seguinte faz tapioca para o folgado, do jeitinho que ele gosta.

Nesses horas temos que ser Grécia. Oxi, folgado. Essa dívida não é minha. Sai pra lá, Angela Merkel. Temos muito a aprender com o ilunga.

gregorioduvivier

Gregorio Duvivier – Folhas de São Paulo

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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