O outono e o haicai

“Novo outono/ só no porta-retrato/ não mudo de ano.” Ainda ontem, nos escondidos, nos muquinfos ou nas mesas dos bares a céu aberto, brincávamos de haicais nas costas dos guardanapos. Na Curitiba de ainda ontem, na Curitiba de meado dos oitenta (não é mesmo Josely Vianna Baptista, musa e música?) vivíamos uma disponibilidade de dar inveja aos clochards franceses. E deitávamos haicais aos papéis a esmo.

Num hoje folclórico réveillon, acho que em Praia Grande, litoral paulista, depois de um porre colossal, Paulo Leminski acordou, no dia primeiro do ano, numa ressaca de matar o padre. Zonzo saiu à varanda da casa para experimentar o travo e o trago do primeiro cigarro.

No chão de tábuas, a visão assustadora: dezenas de gordas formigas arrastavam uma cigarra morta. O poeta, que era exímio, e sacava o revólver com a agilidade de um caubói de faroeste, mesmo batido pela noite excessiva, não teve dúvida, e anotou alto e bom som: “Fim de farra/formigas mascam/ restos de cigarra”. Exagero, João Virmond Suplicy?
Numa viagem com Alice Ruiz a Nova Prata, RS, – Estrela Leminski só uma menininha a bem menos de um metro do chão -, a atravessar montanhas no carro de uns amigos fomos assistir ao assombroso espetáculo de uma cachoeira no coração da serra. Leminski não havia mais. Entre sacolejos e geladas brisas gaúchas, a tarde de outono arrebentava o céu de azuis.

Ao longo do caminho, o espetáculo, raro, aqui e ali, de pinheiros amontoados, quase colados uns aos outros. Alguém evocou que era assim na origem de tudo, quando do surgimento das florestas de pinheiros. Lembramos, de imediato: em Curitiba isso não existia mais sequer para amostra, e nos veio a nostalgia das coisas primeiras. “Pinheiros juntos/ontem era o começo/do começo do mundo.” Assinei embaixo, gravando o haicai de memória e viva voz.

Ou, de novo, o velho Pablo de guerra, bêbado e feliz, a urrar, nove da noite, ao telefone, desde o Pilarzinho. Lembro, nítido, a data: janeiro de 1987. Vindo da rua aonde fora comprar cigarro, retornava o poeta à casa, em estado epifânico. “Achei, Bueno, achei. Olha: ‘Entre os meninos de bicicleta/o primeiro vaga-lume/ de 1987’. Rima rara, Bueno: bicicleta com oitenta e sete…”

Em janeiro, necessário explicar, costumava aparecer, segundo Leminski, o primeiro vaga-lume que, também segundo ele, autenticava o verão. Os vaga-lumes aos bandos, viriam, mas não já, só em fevereiro… Indispensável flagrar o primeiro, porque único, irrepetível. E este só poderia ser colhido nas redes de um haicai. Aí, de novo, o outono, hermano Solda e demais hermanos! Cadê um haicai novo que fale ainda outra vez dos céus azuis de Curitiba e nos conte microestórias do tamanho da China?

Talvez em Marduk, Helena Kolody confabule com Paulo Leminski para amanhã, bem de manhã, em homenagem ao recém-aniversário da cidade, um haicai ainda molhado de estrelas.

2007 – O Estado do Paraná

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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