O privilégio de escolher uma cadeira

Uma vocação não chega a dar sentido para a vida, mas ajuda a aprumar o sujeito em meio ao vendaval constante de existir

“Cada um tem um lugar sobre a Terra”, disse Carlos Castañeda. Escrevo para você do meu lugar: uma cadeira ergonômica atrás de uma mesa onde há um computador e uma xícara de café. Demorei quase 30 anos para conseguir me sentar nessa cadeira. Antes fui garçonete, redatora publicitária e roteirista. Coisas que fazia para ganhar a vida enquanto não conseguia me firmar como escritora.

Meu pai nunca almejou uma cadeira. Ou melhor, até almejou: uma que estivesse atrás de um prato cheio de comida. Filho de imigrantes italianos pobres, trabalhava desde adolescente, ora colhendo uvas, ora carregando pedras. Aos 17 anos, foi colocado por meu avô para tocar um pequeno restaurante. Nunca mais saiu de lá e fez das cadeiras dos seus clientes, a sua.

Minha avó também não pôde escolher a cadeira dela —se pudesse, me pergunto qual seria: atrás de uma mesa de professora? Atrás de um microscópio? Do manche de um avião? Dentro de seu pequeno círculo doméstico, o único que podia frequentar, deu um jeito de escolher a banqueta mais confortável. Ficava na cozinha, atrás de uma máquina de fazer massa, onde se sentia resguardada, salgando o espaguete com as lágrimas que não podia verter na frente do marido.

No seu ensaio “As Pequenas Virtudes”, a escritora Natalia Ginzburg sugere que, mais importante do que deixar para o filho uma poupança, é ajudá-lo a encontrar a sua vocação. Quando olho para os meus amigos que encontraram as suas, percebo que ela está certa. Uma vocação não chega a dar sentido para a vida porque não existe sentido para a vida, mas ajuda a aprumar o sujeito em meio ao vendaval constante que é existir. Ou ao menos ajuda a preencher a rotina com algum prazer, o que não é pouca coisa. Segundo Ginzburg: “o que é a vocação de um ser humano senão a mais alta expressão de seu amor à vida?”

Quando perguntei para o meu pai o que ele teria se tornado se não tivesse ingressado no restaurante tão cedo, me olhou surpreso. Percebi que, em tantos anos, essa questão nunca havia passado pela sua cabeça.

Escolher o que se quer fazer é um privilégio. Saber que existem tantas cadeiras possíveis é um privilégio. Poder se preparar para sentar na almejada é um grande privilégio. E se sentir impelido a ocupar uma é uma sorte, porque alguém pode ter toda a condição financeira e física para ocupar o lugar que quiser e não ter vontade para isso.

Às vezes tenho a impressão que dançamos a dança das cadeiras, aquela clássica, que acontecia nas festas. A música começa, todos vão circundando os assentos, cobiçando esse ou aquele, apertando o passo, sincronizando o passo, os mais sortudos se sentando antes, os menos sortudos disputando os cantos restantes e, no fim, todo mundo se acomoda como dá. E se dá.

Ainda bem que a cadeira que ocupamos não nos faz quem somos. “Cada um tem seu lugar sobre a Terra”, disse Castañeda no começo do texto. E eu mostrei apenas uma parte do meu. Ao lado dessa cadeira que levei décadas para conquistar —e como foi bom conquistá-la—, há uma lixeira cheia de papéis amassados, uma cachorra e um tapete de ioga. No sofá atrás de mim, uma filha. Ao meu lado, o homem que eu amo. E para lá da nossa varanda, o mundo, as coisas que eu faço pelo mundo, e a possibilidade de sempre recomeçar de uma nova banqueta.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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