O tempo, essa persistente ilusão

Ele é uma das criações humanas que nos amparam, ao nos localizar em eixos imaginários

Como sabemos, o tempo não existe. Ele é uma daquelas criações humanas que nos amparam, ao nos localizar em eixos imaginários —como os tabuleiros com reis, deuses, ricos ou demônios, bandidos, monstros. Acreditar numa linha e num sentido nos apazigua. Tenho uma topografia e um projeto: estou aqui e vou para lá. Assim, a gente materializa e conta o tempo. No entanto, Einstein já disse: a diferença entre passado, presente e futuro é apenas uma persistente ilusão.

Eis o truque: para poder contar o inexistente, a gente usa o espaço. Ao riscar esse espaço, inclusive, nos convencemos que o tempo existe e é matematizável. Uma das primeiras formas de fazer isso foi fincar uma estaca no chão e deixar a luz do sol —sua sombra— desenhar o movimento. De ampulheta em ampulheta, grão de areia, metal, laser, íons, criamos várias engrenagens para instaurar Cronos, o tempo dos instantes que se sucedem e valem a mesma coisa. Um minuto é sempre um minuto. Sabemos o quanto a invenção do relógio mecânico foi fundamental para a consciência da modernidade. Mesmo que desejemos a eternidade de Aion, a suspensão da contagem, sempre mortal.

Mas talvez Einstein estivesse certo e quem sabe tempos e espaços se comprimam, expandam e assim se relativizem, para usar os verbos que aprendemos a respeitar a partir do século 20. Do ponto de vista subjetivo isso é indubitável, pois há minutos que trazem revelações, e assim valem horas ou décadas. É o instante, Kayrós, raramente apreensível. Como não lembrar de Proust, Bergson ou Freud? O próprio ato de lembrar já diz quem somos, seres simbólicos por excelência, condenados a buscar a tríade: o eu-agora, o antes de mim, o depois de mim. Isso é o passado, o presente e o futuro, mesmo que uma persistente ilusão. O sujeito, ele sim, existe. E busca entender sua vida, seu entorno e assim cria a antiquíssima arte de narrar histórias e de voltar a elas.

Veja o ano de 2022. Comemoramos 200 anos da chamada Independência de algo como um conjunto de seres bem diferentes que vivem em lugares muito diversos e distantes uns dos outros e falam quase a mesma língua. O leitor já parou para pensar que coisa estranhíssima é dizer Independência ou Morte, e ainda para o próprio pai? Também tem os 100 anos da Semana de Arte Moderna. Quais as formas de sentir, pensar e expressar a vida? Esse embate terminou, entre os antigos e os modernos? A invenção do tempo é uma oportunidade para fazer essas perguntas, sempre difíceis: onde estamos, o que desejamos, o que inventar, para onde ir, como, junto com quem. Que bonito o esforço de parar e refletir. De passear no tempo, de imaginar e planejar. Esse é o processo da análise.

Essas ideias me vieram à cabeça numa exposição que chama justamente “Contar o tempo”, que está no Centro Maria Antonia, em São Paulo. Não sei bem por que, mas me emocionei vendo esse esforço analítico, tão humano. E nossa miséria. Talvez a crueza da escansão das imagens da Carmela Gross ou o efêmero da escrita com água de Marilá Dardot. Ou quem sabe o impacto do verde enegrecido das telas de Dora Longo Bahia ou a busca de Talles Lopes pelas formas niemeyerianas Brasil afora.

Existindo e não existindo, cortamos o tempo sem cessar. Por exemplo, me acalma pensar que em 37 milhões de anos nada mais existirá deste planeta, que há 500 mil anos raspamos uma pedra na outra e conseguimos imitar o misterioso fogo da natureza, coisa que fazemos a cada clic de um isqueiro. Me acalma pensar que há muitos sites com a contagem regressiva de quantos dias, horas, minutos e mesmo segundos faltam para o fim do governo do atual presidente, que em alguns dias meu filho ficará mais velho, que em 48 horas talvez encontremos um novo amor.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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