O TSE imita a arte para punir a vida

Friedrich Dürrenmatt (1921-1990), suíço de língua alemã, dramaturgo e romancista, é autor de O juiz e seu carrasco, novela clássica com alegoria irônica sobre a justiça. Temos boas traduções, a antiga, da Editora Globo, a recente, da LPM, também as disponíveis em pdf. Curta, envolvente, fisga o leitor por toda a vida (li três vezes). A trama lembra ao longe e sob as devidas reservas o drama de Deltan Dallagnol: o comissário Bärlach, roído pelo câncer, é incumbido de investigar a morte de um policial. Incumbe seu assistente, Tschanz, de investigar, mas direciona o processo para atribuir a culpa a Gastmann, milionário de passado nebuloso, na juventude amigo de Bärlach.

Gastmann era criminoso sempre impune, rico e influente. Bärlach carregava ódio e frustração porque assistira quando Gastmann, décadas antes, matara amiga diante dele, Bärlach sem outro motivo que não o de demonstrar que ficaria impune; como aconteceu, investigado pelo jovem policial Bärlach. Incriminado e prestes a ser julgado, agora pela primeira vez na vida, Gastmann queixa-se ao velho amigo, hoje seu juiz moral, de que este sabia não ter sido ele autor deste último crime. Bärlach concorda, e acrescenta: “escapou do crime que cometeu; não escapará do crime que não cometeu”. Não fossem os assassinados, seria justiça poética, dentro do ambiente ficcional com que Dürrenmatt examinava a natureza humana.

Deltan Dallagnol foi cassado – justiça poética – pelo crime que não cometeu: pedir exoneração do cargo para escapar de punição disciplinar e disputar mandato de deputado. Não foi o autor deste crime, de resto inexistente; pode ter tido a intenção de cometê-lo. Se não existe crime de intenção, quem teria cometido crime de que foi acusado? Foram aqueles que concederam a exoneração pendente processo disciplinar e os que admitiram sua candidatura, apesar daquele motivo. A PGR fechou os olhos, toldados pelo espírito de corpo, pois ali Dallagnol brilhou no céu para arder no inferno. A exoneração não é deferida pelo interessado, mas por aquele que lhe atende o pedido. Esse atropelo custará o mandato de Dallagnol.

O TSE imitou a arte pretendendo retratar a vida, de propósito ignorando a falha da sua justiça eleitoral no admitir o registro da candidatura de Deltan Dallagnol. O TSE funcionou como o comissário Bärlach, ao punir Dallagnol não pelo pedir a exoneração, que em absoluto foi crime como o de Gastmann. Dallagnol foi punido por crime mas antigo, o de ser o manda brasa, Savonarola, um Marat ensancedido na Lava Jato, que ousou o protagonismo de denunciar políticos e ousar sugerir desvios de comportamento de ministros de tribunais superiores. E o carrasco, quem foi? Está no fim do livro de Dürrenmatt. Aqui de novo a alegoria irônica sob o véu da justiça poética.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
Esta entrada foi publicada em Rogério Distéfano - O Insulto Diário e marcada com a tag , . Adicione o link permanente aos seus favoritos.
Compartilhe Facebook Twitter

Deixe um comentário

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.