O velho do ovo esquerdo de fora

“Dizem que em algum lugar, parece que no Brasil, existe um homem feliz.” Tempos desses que parecem ontem estava conversando com o amigo e escritor Paulo Lins sobre a frase/verso de Vladimir Maiakovsky. O mesmo poeta russo do “gente é para brilhar” etc.

Donde acabei por achar o personagem: Feliz é o velho do ovo de fora. Nem aí para a humanidade. O ovo esquerdo, a parte mais delicada de um homem, flertando com o mundo em uma esquina de Copacabana.

Nem sei se presta atenção nestes detalhes particulares. Simplesmente veste a ceroula branca, clássica, e vai tomar sua cerveja.

Deve ter várias ceroulas brancas, umas 365 pelo menos. A única vez que o vi diferente estava com um calção de malha, igualmente relax, de um patriótico pijama verde-e-amarelo –era Copa do Mundo de 2014.

Só os meninos da banda punk “TeXtículos de Mary” me entenderiam a essa altura.

Quando o velho chega cedo ao Papillon, seu bar predileto na esquina da Miguel Lemos com a Barata Ribeiro, senta na calçada e o ovo toma um bronze sob o sol dos trópicos. Até aí, como diz o livro do Eclesiastes, nada de novo.

Alguns garçons, nos últimos verões, já o alertaram para o descuido. Ele nem ouve. Não há papo sobre o assunto, embora seja cada vez mais conhecido como o velho do ovo esquerdo de fora.

A bela licença poética de ser velho em Copacabana, dizem uns filósofos de botequim da área.

O bardo Fausto Fawcett, amigo de bairro e dos concertos do projeto “Trovadores do Miocárdio”, está de acordo, embora ache que o personagem seja bem mais rico.

Velho safado, nojento, sopram alguns passantes. Foi um grande artista de teatro, tv e cinema, outros narram a trajetória, sem precisão biográfica. Sequer alguém arrisca dizer o nome da tal figura.

Alheio a isso tudo está lá o ovão esquerdo. Faça calor ou clima ameno. Outro dia a Border collie de uma amiga resfolegava, em um momento de descanso, com a língua quase tocando naquele esquecido testículo. O velho e a cadela nem aí para a cena.

O ovo do velho é quase um personagem à parte em Copacabana, o bairro mais conhecido do mundo, onde reinam milhares de atípicas criaturas.

Por sacanagem, garçons do bar fizeram vaquinha para comprar calças compridas para encobrir as vergonhas do velho. Como se dinheiro para comprar roupas fosse problema do tio. Não mesmo. Goza de uma modesta, porém suficiente, aposentadoria de funcionário público da ex-capital da República.

Uma maluca viciada em crack faz bilu-tetéia com o ovo esquerdo do velho. Com delicadeza, 00óbvio. Ele sequer tira o olho do jogo do seu Vasco da Gama na tevê pela Segundona do Campeonato Brasileiro, meu caro Aldir Blanc.

O velho homem do ovo de fora é que é feliz e nem carece dessa ditadurazinha da felicidade óbvia.

xico-sá

Xico Sá – Folha de São Paulo|24/07/14 

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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