Ôrra, meu

Rita Lee quis e foi exatamente o que era, mesmo quando não quiseram que ela fosse

O cérebro de uma criança é uma suruba neuronal. É sinapse pra cá, sinapse pra lá, neurônio pegando neurônio que provavelmente nunca mais vai encontrar na vida. Ou, se encontrar, provavelmente terão funções tão diferentes que um dirá ao outro: “Deus do céu, como eu pude trocar impulsos elétricos e neurotransmissores com você?!”.

O meme “se organizar direitinho, todo mundo transa” não se aplica à neuroplasticidade do cérebro infantil. Nesta cama redonda de massa cinzenta, o mais correto seria “enquanto não tá organizado, todo mundo transa”. Cada canto do cérebro fala com os outros. É possível que crianças até dois anos vivenciem sinestesia: sintam cheiros de cores, ouçam sons de cheiros, vejam cores em melodias.

Aí a gente vai crescendo e, como quem segue marcas de pneu numa estrada de terra, vai se apegando a certos trajetos. Enquanto o cérebro infantil é um campo aberto em que se pode ir pra qualquer lado –e invariavelmente pra vários ao mesmo tempo–, o cérebro adulto fixa suas malhas ferroviária e rodoviária, constrói sólidas estradas e viadutos por onde os pensamentos irão seguir pelo resto da vida. Amadurecer é um profundo processo de emburrecimento.

Ora, ora, quem sou eu pra falar de cérebro? A Folha tem a Suzana Herculano-Houzel. Tem o Drauzio Varella. Bom, sou um cronista curioso. Uma crônica é como aquela música do Adoniran Barbosa, “Torresmo à milanesa”. “Vamos armoçá/ Sentados na calçada/ Conversar sobre isso e aquilo/ Coisas que nóis/ Não entende nada”. Se você me lê é porque gosta de sentar aqui no meio-fio, perguntando “Que é que você trouxe/ na marmita, Dito?”. (Eu sou o “Dito”). Aí eu digo: “Truxe ovo frito/ Truxe ovo frito”.

Os ovos fritos dessa semana eram os neurônios do cérebro infantil, assunto de um podcast incrível que ouvi por esses dias, entrevista do colunista do New York Times Ezra Klein com a psicóloga e filósofa Alison Gopnik. Só que aí morreu a Rita Lee.

Li uma vez o livro de uma médica de cuidados paliativos. Ela dizia que o maior arrependimento das pessoas que já estavam mais pra lá do que pra cá era, invariavelmente, não terem feito o que estavam a fim em nome de seguir o que os outros supostamente esperavam delas. Imagino que a Rita Lee não padeceu desse mal. Ela foi a personificação do poema do Paulo Leminski: “Isso de querer/ ser exatamente aquilo/ que a gente é/ ainda vai/ nos levar além.”

Não conheci a Rita Lee, mas a impressão que tenho é que ela quis e foi exatamente o que era. Mesmo quando não quiseram que ela fosse. Foi expulsa dos Mutantes, que resolveram enveredar pelo rock progressivo e não a achavam boa instrumentista. Quem consegue se lembrar de uma música dos Mutantes sem a Rita Lee? Enquanto isso, ela criava, com seu grande parceiro Roberto de Carvalho e um punhado de músicos casca grossa, “Lança Perfume”, “Desculpe o Auê”, “Ovelha Negra”, “Caso Sério”, “Agora Só Falta Você”, “Baila Comigo”, “Chega Mais” –a lista vai longe. Até o sol raiar. Nas melhores pistas da cidade. Há décadas.

Eu devia ter uns seis anos quando meus pais me levaram a um show da Rita Lee. Não me lembro exatamente como aconteceu, mas num determinado momento estavam no palco, dançando, Sócrates, Casão e Wladimir: a nata da democracia corintiana. Essa imagem de um Brasil jovem, bonito, progressista, otimista e festivo ficou marcada em mim, como uma vereda talhada no jardim do meu cérebro. Volto a ela de vez em quando e colho cheirosas sinapses cheias de serotonina, endorfina e dopamina. Agradeço a esta mina tão fina. Ôrra, meu.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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