Os cartunistas estão morrendo

Há uma semana foi Ykenga, um dos poucos cartunistas negros ativistas do Brasil. Sábado foi o Ziraldo, o maior da nossa espécie. Mas o que é um cartunista? Na definição de Charles Monroe Schulz, o criador do Charlie Brown – que Ziraldo batizou no Brasil de Minduim- “cartunista é alguém que não pinta tão bem para ser um pintor, nem escreve tão bem para ser um escritor”. E qual a importância deles? Millôr Fernandes disse que “humorista (honestamente, ele estava falando sobre cartunistas) no Brasil é alguém que tem toda a importância do mundo para ser preso e nenhuma para ser solto”. Hoje em dia não tem lá muita importância nem para ser preso. Mas não estou reclamando disso.

Depois da peste negra da Covid perdemos alguns membros ilustres da sociedade secreta dos desenhistas de calungas: Ota, ex-editor da revista Mad, Nani, ex-roteirista de humor da Globo e Paulo Caruso, caricaturista do programa Roda Viva. Cartunistas são como cobradores de ônibus (exceto pelo fato de que cartunistas nunca viram dinheiro): estão condenados a ver sua profissão desaparecer.

Se em um voo onde alguém sofre um ataque do coração e a aeromoça grita “temos algum cartunista entre os passageiros?” a chance de alguém erguer o braço é ínfima. Mesmo porque ela nunca gritaria isso, primeiro por não fazer sentido e, segundo, o que um cartunista poderia fazer numa situação extrema dessas além desenhar um desfibrilador com um balão dizendo “não posso fazer nada, estou em estado de choque”? Mas se ela perguntar por um médico, ao menos um braço vai esticar para o alto e salvar uma vida. Eis uma pessoa útil para a sociedade.

Cartunistas são úteis para a sociedade? Cartunistas ajudam a tornar a realidade mais leve. Se você ler um livro inteiro de cartuns de Saul Steinberg ou do Quino é bem capaz de você sair flutuando por aí como um balão de gás hélio. E Ziraldo era um dos grandes, como Steinberg e Quino. Como Millôr, Ronald Searle, Sempé, Johnny Hart, Charles Addams, James Thurber, Siné. Todos mortos, por sinal.

Num dia que parece um sonho de tão estranho, se não me engano isso foi em 2017, eu estava em São Paulo para uma palestra e uma exposição sobre cartuns. Enquanto esperávamos fomos para um bar, e lá estavam o Ziraldo e o Paulo Caruso. Sentei-me ao lado do Ziraldo e de frente para o Paulo, que fez uma caricatura minha. Ziraldo bebeu uísque e Paulo Caruso vinho branco. Não lembro sobre o que conversamos mas me senti numa edição empoeirada da revista Careta, editada pelo Tarso de Castro.

Não falo isso como deboche, mas foi em uma edição especial de cartuns da Careta, comprada em um sebo perdido numa rua esquecida de Ponta Grossa, que conheci o trabalho do irmão gêmeo do Chico Caruso. Ele publicava uma história chamada Avenida Brasil, com caricaturas de políticos e generais militares. Havia alguns cartuns do Ziraldo também, além de Glauco, Angeli, Laerte e o eterno Jaguar.

Jaguar é o último dos moicanos. O mais divertido dos cartunistas da geração do Pasquim, hoje com 92 anos. Conviveu com Sérgio Porto, publicou os primeiros desenhos do Henfil no hebdomadário carioca, bebeu com o Millôr, foi preso com o Ziraldo. Foi preso com o Ziraldo por causa de cartuns. Isso não parece um fato, parece um cartum do próprio Jaguar – como aquele em que o artista fica preso à própria instalação. Foi um período repugnante da história que durou 21 anos, e que os autodeclarados patriotas desejam bestialmente que volte.

Talvez volte. Quando isso acontecer, talvez existam cartunistas ainda arrastando os pés pelas calçadas -como o Corongo, da controversa história do Carl Barks, cartunista da Disney. Segurando um bloco de notas, desenhando um desfibrilador, gritando S.O.S.

Benett|Plural

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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