Os revisionistas

Como se não bastassem as crises sanitária, econômica e social, que atormentam atualmente o mundo todo e o Brasil em particular, incluindo governantes insanos e irresponsáveis, eis que adentram o gramado os revisionistas – aqueles que pretendem julgar o passado com os conceitos do presente.

De repente, na onda dos protestos contra o assassinato de George Floyd, em Minneapolis, EUA, passaram a revoltar-se contra fatos e personagens históricos de ontem, derrubando-se ou pichando estatuas (quando não são atiradas nos rios) e revisando-se ou eliminando-se obras artísticas e literárias consolidadas através dos tempos. Cristóvão Colombo, Winston Churchill, Abraham Lincoln, o general Robert Lee, da Guerra de Secessão americana, o bandeirante Borba Gato e até Mahatma Gandhi tornaram-se malditos. Tudo porque um dia tiveram (ou os críticos acham que tiveram) algum laivo racista.

O filme “E o Vento Levou”, grande clássico da cinematografia mundial, foi retirado da plataforma de streaming HBO Max. O longa-metragem, datado de 1939, focaliza a Guerra Civil americana e foi ganhador de oito estatuetas do Oscar, mas sua representação de escravos conformados e proprietários de escravos heróis passou a ser alvo de críticas. Para o autor de “12 Anos de Escravidão”, John Ridley, o filme deve ser eliminado porque “ignora os horrores da escravidão e perpetua alguns dos estereótipos mais dolorosos das pessoas de cor”.

Não obstante, quando Hattlie McDaniel, que personificou “Mammy”, no filme de Victor Fleming, recebeu o Oscar na 12ª edição do prêmio, como melhor atriz coadjuvante, declarou: “Espero sinceramente ser sempre motivo de orgulho para a minha raça e para a indústria cinematográfica”. Ele se tornara, naquele momento, a primeira atriz negra a receber a estatueta.

No Brasil, a fúria alcançou Monteiro Lobato, o grande Lobato que divertiu o educou gerações de leitores. Tudo por causa da rechonchuda e querida Tia Nastácia. Segundo Djamila Ribeiro, também escritora, livros como “Sítio do Pica-Pau Amarelo” e “Reinações de Narizinho” não só disseminam discursos racistas, como os estimulam e não podem constar da grade educacional infantil. Então, tá.

Além de manifestação de censura, tais atitudes são um absurdo inaceitável, sem qualquer sentido.

Então, pelo raciocínio dos revisionistas, dever-se-ia derrubar e incendiar as instalações do campo de concentração de Auschwitz – palco das maiores atrocidades nazistas durante a Segunda Grande Guerra. Não. Ele deve ficar lá como símbolo de um dos piores momentos da humanidade, para que nunca se repita.

Não se pode apagar o passado, por mais que ele nos atormente. São fatos históricos que devem ser preservados como tal e como lições para as novas gerações.

Também abomino a segregação e acho que a escravidão foi uma das maiores máculas da civilização. Mas não será assim que iremos rechaça-las e corrigi-las. Ao contrário, só estaremos criando novo preconceito.

Hélio Schwartsman, articulista da Folha de S.Paulo, enfrentou com correção o tema: “A verdade é que, gostemos ou não, somos prisioneiros de nossas épocas”. Garante que “em cem anos, o tratamento que dispensamos a animais e prisioneiros fará parte do rol de crimes do passado”. E arremata que “exigir de todos aqueles que nos antecederam as atitudes morais que cobramos dos contemporâneos também é uma tremenda injustiça”.

Não se pode defender nem cultuar a memória do escravista Edward Colston. Como não se pode homenagear os generais confederados e os que mantiveram o Brasil sob o tacão da tirania durante a ditadora militar brasileira, afogando a liberdade e a democracia. Ou os fomentadores de guerra e os generais norte-americanos que eliminaram, sem dor ou consciência, milhares de inocentes civis em Hiroshima e Nagasaki, em 1945. Mas eles existiram e não será esquecendo-os que eliminaremos todo o mal que causaram.

Não há como interpretar o ontem com os olhos de hoje – reafirme-se. Se assim fosse e só se enxergasse o presente, não apenas eliminaríamos o passado, como não teríamos futuro.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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