Sopapos no Oscar e fora dele

O que poderia dar uma boa discussão caiu rápido no tabefe virtual

A festa de gala acabou se tornando festa de galos, deixando as redes sociais em polvorosa: Will Smith estapeia Chris Rock, depois de o comediante fazer piada com a calvície de Jada Pinkett Smith, companheira do primeiro. Atriz premiada com NAACP 2010 por sua interpretação na série dramática “Hawthorne”, Jada sofre de alopécia e precisou radicalizar raspando a cabeça. A perda dos cabelos não alterou em nada sua beleza estonteante, ainda que não tenha sido por opção.

Havia uma pedra no caminho do vencedor do Oscar de melhor ator e ele não teve dó, chutou com tudo. O humor é um tema caro à psicanálise, sobre o qual Freud discorreu em sua obra-prima “O chiste e sua relação com o inconsciente” (1905), no qual ele desvenda sua dimensão em nossas vidas, como forma de trazer à luz conteúdos inconscientes recalcados, tornando-os socialmente aceitáveis.

Espécie de tráfico de material tido como condenável, junto com o sintoma, o sonho, o lapso e o ato falho, o humor é uma formação do inconsciente e como tal não se exaure, revelando seu caráter de ganho de consciência e oportunidade libertadora. Mas também, como sabemos, serve de escoadouro do que há de pior em nós. Sob o guarda-chuva da “brincadeirinha”, humilhações e francas violências correm soltas.

Chris Rock teve uma atitude abominável, como costuma ser este humor que não visa nenhum ganho de consciência ou reflexão, mas apenas cliques. E, nesse quesito, quanto mais escatológico melhor. Não tenho dúvida de que, junto com algum eventual cancelamento, Rock surfará na onda publicitária que se seguiu ao acontecimento.

Resta saber o que pensar de Will Smith, cuja atitude lavou a alma de todos nós, que assistimos à cerimônia e sentimos vontade de socar o anfitrião, com razão. É de se imaginar o estado de nervos — absolutamente compreensível — de Smith, com os olhos do mundo aguardando para saber se sairia ou não vencedor da noite.

Como bem lembraram Joice Berth e Djamila Ribeiro, as mulheres negras são os sujeitos mais oprimidos e violentados de nossa sociedade e é raríssimo que os homens —negros, inclusive— as defendam, que dirá publicamente. Ponto para Smith, que fez o que desejávamos fazer a milhares de quilômetros de distância.

Mas a forma foi lamentável, dando uma outra camada ao acontecimento, na qual dois homens adultos ultrapassam os limites, respondendo a violência verbal com violência física. Ainda estamos em um momento no qual a mulher, principalmente negra, está tão oprimida e invisibilizada na cena, que só resta aos machos alfa se digladiarem. A coisa só não entornou de vez porque toda a violência de Rock está na língua ferina e ele parece habituado a sair impune, apenas recolhendo o gozo de uma plateia que ri até das próprias humilhações.

Quando as mulheres reagem são barraqueiras e histéricas, quando os homens o fazem são nobres e cavalheiros. A cena toda é de uma misoginia exemplar, deixando a vítima estupefata.

Preparada para ver o companheiro brilhar, em uma noite de festa, assumindo publicamente sua calvície na meca da aparência artificial, Jada estava completamente desarmada diante da virulência do apresentador. Ainda assim, reconheceu de imediato o limite ultrapassado, sinalizando com o rosto, enquanto Smith e Lupita Nyong’o continuaram rindo até a ficha cair.

Smith não poderia tê-la defendido falando —como fez depois—, tinha que ser um tabefe, mesmo? Afinal, é isso que esperamos dos homens, que sigam resolvendo as questões no muque? Acredito que não, pois o próprio Smith pediu desculpas em seguida.

O único saldo positivo teria sido a oportunidade de refletir sobre violência, racismo e misoginia. No entanto, as opiniões foram polarizadas com acusações mútuas e o onipresente fogo amigo. Resultado: o que poderia trazer um bom diálogo rapidamente sucumbiu à superficialidade e aos sopapos virtuais conhecidos por todos nós.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
Esta entrada foi publicada em Vera Iaconelli - Folha de São Paulo e marcada com a tag , , . Adicione o link permanente aos seus favoritos.
Compartilhe Facebook Twitter

Deixe um comentário

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.