…Ou desocupa a moita

O momento em que algo na ordem geral das coisas sai do prumo

Só eu presenciei, porque na época ainda fumava e tinha ido até o jardim. Foi, primeiro, um barulho intenso, um flap-flap-flap de bicho grande correndo na mata, tipo cena de “Lost“; então uma moita de azaleia chacoalhou e de dentro dela surgiu rolando um cara, terra na camisa e folhas secas no cabelo. Levantou-se num salto e me encarou: metade dele era alívio, metade, agonia.

Eu não conhecia quase ninguém naquele almoço. O sujeito rodante logo me contaria que também não. A casa era da sogra dele. O almoço era pra ele conhecer a sogra e as amigas da nova namorada. Uma dessas amigas vinha a ser a minha namorada, à época.

Ao ver alguém rolar pra fora de uma moita, no meio de um almoço, a gente suspeita que em algum momento na vida do cidadão algo na ordem geral das coisas deva ter saído do prumo. Por isso, meu primeiro reflexo foi perguntar: “Tá tudo bem?”. “Agora tá”, disse ele —e talvez pela cumplicidade imediata que se cria entre duas pessoas que acabaram de passar por uma situação extraordinária (mesmo que eu apenas como testemunha) ele me contou toda sua epopeia.

Foi na véspera do almoço que algo na ordem geral das coisas havia saído do prumo: este algo era seu sistema digestivo e o culpado, um churrasco coreano. O sujeito tinha passado mal a noite inteira. Foi pro almoço apavorado e nem uma hora depois de conhecer a sogra e as amigas da namorada recebeu o chamado da natureza. Tentou chegar num banheiro mais reservado, mas se deu conta de estar no campo de visão da sogra e não quis ser visto invadindo as partes mais reservadas do lar.

Trancou-se, portanto, no lavabo e mal começara a obedecer as ordens urgentíssimas ditadas por bactérias exógenas ao seu microbioma intestinal quando alguém tenta abrir a porta. Ele ouve uma voz próxima dizer “tem gente” e outra responder “valeu” e o silêncio em seguida sugere a materialização de um dos seus maiores temores, naqueles minutos atribulados: o surgimento de uma fila. De amigas da namorada. Na casa da sogra. Num momento em que as condições atmosféricas dentro do lavabo —ele me explicou de forma um pouco mais direta do que eu lhes transmito— já estavam bem longe das ideais. Se abrisse a porta, a sala se transformaria imediatamente em Pripiat minutos após a explosão do reator nuclear de Tchernóbil—sendo ele o reator. Cul-de-sac. Sem duplo sentido. Não, não, melhor com.

É nos momentos de sufoco, felizmente, diante das grandes encruzilhadas da vida, que a mente humana obra. O figura avistou a janela que dava para o jardim. Calculou. Batia na sua cintura e era grande o suficiente para a passagem do seu corpo —na horizontal.

A envergadura do meu interlocutor —ele me contou quase com lágrimas nos olhos, como um garimpeiro contaria ter achado ouro— era precisamente a necessária para que com uma mão ele destravasse a porta e com a outra desse o apoio para saltar janela afora. E foi isso que ele fez. Ao mesmo tempo abriu o trinco e lançou-se num voo rasante em direção ao desconhecido. (O desconhecido, no caso, era eu).

O intervalo entre o cara rolando moita afora e a narrativa de toda essa epopeia não durou mais do que um minuto. Menos tempo do que levou sua respiração para voltar ao normal. Ele tirou as folhas do cabelo, espanou com a mão o barro da camisa, entramos e almoçamos como se nada tivesse acontecido.

Depois daquela tarde nunca mais o vi, mas guardo sua imagem no panteão dos meus ídolos, ao lado de Messi, de Usain Bolt, de Machado de Assis: seres humanos que superaram a mediocridade e nos mostraram que é possível ir além —mesmo que além da janela do lavabo.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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