Lá vinha eu dirigindo, o rádio ligado. Foi quando a voz da apresentadora – naquela locução galopante, aguda, que simula estar à beira de um ataque de riso – anunciou entrevista com uma pedagoga a respeito, disse ela, “do problema central do século XXI”.
Fiquei atento – como se dizia antigamente: apurei os ouvidos. Não é a toda hora que se dispõe de revelação tão grandiosa. Foi quando a locutora revelou qual era o problema:
– O foco.
Isso mesmo, o foco, vejam só. O foco. Minha atenção, digamos, brochou.
E lá veio uma enxurrada de conselhos supostamente sapientíssimos – dirigidos aos que as duas chamavam de “jovens” – sobre a necessidade absoluta de se ter um foco, manter um foco, perseguir um foco. Tudo é o foco e deve estar em foco. Estude com foco. Encare seu emprego com foco. Ponha o foco no dinheiro, no sucesso, no prestígio, na fama. Mantenha seus relacionamentos em foco. E por aí foram as duas, sempre robustamente otimistas, ensinando ao mundo como o mundo deveria ser.
Pois eu, que não sou dado a focos, repassei rapidamente algumas memórias em minha pobre cabeça.
Aristóteles, por exemplo, escreveu, além de livros de lógica e metafísica, obras a respeito do andar dos animais – ou seja, se interessava por tudo e mais um pouco. Seu foco era dinâmico, no mínimo. O mesmo se diga de todos os grandes filósofos e pesquisadores. Eis um exemplo sem foco: Alexander Fleming descobriu a penicilina por acidente. Estava fora de foco. Na história da ciência são inúmeros os exemplos.
Michelangelo e Leonardo da Vinci eram tipos sem foco algum. Pintores, escultores, cientistas, preocupados com questões políticas e religiosas – entre elas, levar pitos e dar carões em alguns Papas – além de serem desafetos e trocarem desaforos no meio da rua, faltando pouco para trocarem tabefes.
Einstein não raro esquecia no meio do caminho se estava indo dar aula ou para casa almoçar. Não se interessava apenas pela física, mas por filosofia, por questões políticas, pela questão racial – ao contrário do que alguns insistem em repetir – além de fazer observações refinadas sobre arte, a natureza da inteligência e da religião.
Picasso, um gênio do século XX, era o sujeito mais dispersivo do mundo. Trabalhou feito um forçado e produziu milhares de obras – até hoje não catalogadas por inteiro. Pulava no mesmo dia de quadros a óleo, a desenhos, a gravuras, a ilustrações, a esculturas e brincadeiras com pedaços de pano, de papel, de jornais ou de ferro velho encontrado no lixo. E também escreveu peças de teatro, poemas, além de se ocupar com questões políticas e sociais – indo às touradas sempre que possível, pois nelas via a expressão de algo que revelava as mais profundas forças que agem sobre o ser humano.
Admito que minha cabeça seja um tanto caótica, mas foi o que reuni no momento, enquanto as duas continuavam a doutrinar os “jovens” a respeito do tal foco.
Pois eu acho o contrário.
Essa história de foco é tão somente uma noção derivada do mundo corporativo. É uma forma de disciplinar indivíduos para que se tornem funcionários obedientes, executivos eficientes, desses que passam por cima tudo para obter algum resultado (o foco) que possa ser expresso em dinheiro e lucro (o foco último). Tudo pela obtenção do sucesso (foco do ego), da grana (foco do bolso) e da carreira (foco do currículo). Ou seja, isso de foco é apenas uma armadilha doutrinária à qual se submete os “jovens” e os seres humanos em geral, moços ou velhos, para que sejam “úteis”, “produtivos”, “eficientes”, “objetivos”, mesmo que tenham que passar por cima de si mesmo e dos outros.
A imagem mais adequada para o tal “foco” são as viseiras colocadas nos cavalos: um estreitamento de visão.
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