Nascemos todos loucos. Só alguns escapam

A mãe de Samuel Beckett trabalhava como enfermeira antes de casar. Mesmo assim, ele ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 1969. O pai fez o que pode pra ele ser um especialista em alguma especialidade específica, mas nunca decidiu por alguma. Ficou por isso mesmo, numa rua qualquer de Dublin.

Dessa maneira, James Joyce, vendo que já não ia bem da vista, contratou-o pra escrever Bare-footed, bare-necked, bare-headed man, mas Beckett achou que Finnegans Wake era mais ‘comercial’. Imagine! A quatro mãos, os dois se divertiram muito. Armaram até cama-de-gato. Aí, Beckett conheceu Eugéne Ionesco e achou absurdo que ele ‘transformasse tudo num verdadeiro canteiro de obras visando permitir que mudanças significativas fossem alcançadas e consumadas em benefício da melhoria continua dos processos’. Assim, ambos — Beckett e Ionesco — constituíram a mais completa e experiente equipe de profissionais, habilitada a prover os melhores produtos e serviços para o segmento ‘dramaturgia’. Beckett largou sua coleção de ensaios pra desposar uma linda estudante de piano, a quem chamava carinhosamente de Coquita.

Quando ele ganhou o Prêmio Nobel, ela comentou horrorizada: “Que falta de decoro parlamentar!” Beckett recusou-se a ir à festa porque seria abrilhantada pela dupla sertaneja-universitária da época: Molloy e Malone. Na verdade, uma tragicomédia em dois atos, que virou só tragédia quando caiu o pano e fechou o pau entre os cantores. Beckett escrevia em francês e depois traduzia pro inglês só pra ver como é que ficava.

Aí, hoje os tradutores pegam do inglês e traduzem pro português, só pra ver como não seria em francês. Ele tentou a vida inteira escrever ‘literatura sem palavras’. E, segundo a lenda, parece que conseguiu. Seu último livro publicado sob esse lema nunca foi lido. Beckett nasceu em 1906, viveu por toda a vida e só foi enterrado depois de morto em 1989. Dizem as más línguas que estaria vivo até hoje, se não tivesse o azar de morrer. (do livro Mr. No – que nunca será escrito.

#Rui Werneck de Capistrano é autor e leitor.

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Mural da História

Sofro de dor de cotovelo. Não a dor de ciúme ou despeito por desastres do amor. Falo da dor insuportável da artrite reumatoide, que em meu caso sempre começa pelo cotovelo esquerdo e depois se espalha por todas as articulações.

Não desejo artrite nem para os inimigos. Mentira, desejo sim. Não há nada pior. Na crise, fico travado. Qualquer movimento provoca dores insuportáveis. Eu, que em dias normais me declaro agnóstico e livre de superstições, apelo para todos os santos, para os orixás da umbanda, para Maria Bueno e para quem mais puder providenciar intervenção divina.

Não acredito que haja outra dor tão terrível. Não me venham com crise renal, dores do parto ou do trigêmeo. Artrite é brutal e se espalha pelo corpo inflamando as articulações. No meu caso, raro, atinge as articulações dos membros inferiores. Fico imobilizado. Ensandecido. Capaz de atribuir o sofrimento a uma praga de inimigo. Ou inimiga.

Da outra dor também sofri. Muito. Mas para a dor moral há medicina. Tempo, distância e consciência das ilusões perdidas são remédios infalíveis. Associados a novo amor, é cura definitiva que evita o hábito romântico e pouco higiênico do suicídio.

Duro é segurar a dor da artrite. Quando vem, inicio a escalada dos medicamentos disponíveis. Começo pelos analgésicos. Em doses mamutianas. Agrego os anti-inflamatórios pesados. Logo imploro morfina e a presença salvadora de meu médico para esses achaques, o sábio Sebastião Radominski.

Ele merece um busto em homenagem à sua paciência e à sua medicina. Basta uma injeção e a dor desaparece. Corticoide. Logo aparecerá alguém para relacionar os efeitos colaterais. Retenção de líquidos, inchaços e, em longo prazo, mazelas que é melhor não lembrar. Que fazer? Na hora da dor, prefiro qualquer outra doença que não seja artrite reumatoide.

A artrite reumatoide (AR) é enfermidade autoimune sistêmica com predileção pelas articulações periféricas. É a mais comum das doenças reumáticas intiamatórias. Atinge de 0,5% a 1% da população mundial. Tive a má sorte de entrar nessa estatística muito antes de nascer. Pela frequência da artrite na minha árvore genealógica paterna, não tenho dúvida que essa mazela vem de longe.

Há quem confunda artrite com artrose. Sâo doenças completamente distintas. A artrite reumatoide compromete o estado geral da pessoa, produz abatimento, cansaço e perda de peso. Há inflamação, tumefaçâo e avermelhamento da articulação. A dor é contínua mesmo em repouso e o artrítico levanta-se com muita dor e rigidez. Quer castigo maior do que esse? A artrose, ao contrário, é dor mecânica que se sente depois de usar a articulação. A cartilagem diminui e deixa de amortecer a pressão e o atrito entre os ossos. Os ossos se tocam e se desgastam. Mas a dor da artrose é dor vespertina e alivia-se com o repouso. A pessoa pode levantar-se dolorida e sentir um pouco de rigidez, o que lhe dificulta o início do movimento. Porém, em alguns minutos a rigidez desaparece e a pessoa pode movimentar-se normalmente.

Também não confundam artrite reumatoide com outros tipos de artrite. A artrite reumatoide é diferente da artrite degenerativa, que compromete a cartilagem articular e atinge joelhos, articulações coxofemorais e a coluna espinhal. A artrite gotosa é a gota. O ácido úrico aumenta e se infiltra nas articulações, especialmente dos pés. E há a artrite psoriática que na verdade é a psoríase, a doença que produz uma escamação na pele e pode evoluir para um quadro de dores articulares.

Como se vê, tornei-me um especialista em artrite. Se serve de consolo para outros que padecem da doença, há estudo que informa que não há notícia de artríticos que sofram de burrice. Sofrem de maus bofes, que a dor justifica. Mas de burrice, que é grave, incurável e muitas vezes transmissível, disso estamos livres.

Do livro A Árvore de Isaías, Travessa dos Editores

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A história é uma história

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© Photosight Russian Awards

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Mais fechado que porta de convento.

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Mural da História – 1980

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© Jan Saudek

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Uma lição de Brasil

(Edição Todavia, S. Paulo, 2023, 301 páginas, incluídas notas, índices e bibliografia.) 

Não é resenha, que isso é para leitor treinado no ofício. É recomendação, tão rara quanto entusiasmada. Desde a redemocratização, o Brasil vive a febre editorial do brasilianismo, dos historiadores, sociólogos, cientistas políticos e principalmente jornalistas a analisar os fatos e sobressaltos do Mensalão, da Lava Jato, do impeachment de Dilma, dos crimes de Jair Bolsonaro, do assédio obscurantista do neopentecostalismo e do assalto patológico dos políticos ao cofre da Viúva.

Aqui na mesa estão pelo menos trinta títulos publicados nos últimos cinco anos, parte mínima do total, que se espalha ainda pela internet e revistas especializadas. A maioria informa e esclarece; alguns educam e pouquíssimos entusiasmam. O livro sobre o impeachment de Dilma é de entusiasmar, como já disse. Trabalho de cientista político, professor na USP, doutorado em Chicago e co-autor de obra coletiva com Adam Przeworski, seu orientador nos EUA.

A Operação Impeachment impressiona pelas notas de pesquisa, pela clareza e acima de tudo pelo estilo: um texto conciso, sintético e telegráfico, impressionante na objetividade e no ritmo que lembra os melhores livros de jornalistas; Fernando Limongi escreve sem ranço e pretensões acadêmicas, limitando-se a analisar com objetividade admirável que se traduz no demonstrar que no impeachment de Dilma Rousseff não houve inocentes; todos foram culpados e igualmente responsáveis.

Não há favoritismo nem parcialidade com os envolvidos na Operação Lava Jato, alavanca para a cassação da presidente; sobressai o oportunismo do juiz Sérgio Moro e dos procuradores que o auxiliaram. O livro de Fernando Limongi estimula a projeção sobre a cultura política brasileira; a metodologia do autor permite identificar o ethos da política brasileira desde a fundação da República – com os quais continuamos a nos confrontar no pós Bolsonaro e no atual Lula.

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Flagrantes da vida real

Luar do sertão. © Maringas Maciel

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A árvore subiu no telhado, Parnaíba, Piauí. © Vera Solda

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Mural da História – 2010

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Falsas denúncias de assédio

Não se faz justiça com injustiça, não há reparação histórica que se sustente por meio de revanche

Kevin Spacey foi absolvido por um júri de todas as acusações de assédio e de estupro que enfrentava desde que as primeiras histórias vieram a público. Em grande parte das democracias, o direito à defesa é assegurado aos cidadãos, ninguém pode ser condenado sem que tenha pleno acesso à Justiça, a um processo justo, ao cumprimento da pena de forma digna. Mas desde que as redes sociais se estabeleceram como um tribunal em praça pública há um princípio que vem sendo desrespeitado: o da presunção da inocência. Agimos como bárbaros tomando o poder de julgar, condenar e cancelar qualquer pessoa sem que ela tenha direito a uma defesa imparcial.

O cancelamento sumário do astro de “Beleza Americana” aconteceu na esteira de muitas denúncias quando o MeToo se fortaleceu ao dar voz a vítimas de agressão sexual. Um movimento legítimo, necessário, que trouxe para o debate séculos de abusos aos quais as mulheres, principalmente, sempre foram submetidas.

O MeToo ajudou na criação e no fortalecimento de leis, mostrou a milhões de vítimas como identificar e como denunciar abusos. Não há dúvida de que foi e ainda é um marco contemporâneo. Mas agora nos deparamos com um dos problemas causados pelo discurso vazio de que “a vítima sempre tem razão”. Falsas acusações de assédio sexual são um tema delicado e controverso que merece uma análise cuidadosa e equilibrada porque são movidas por muitas razões: vingança pessoal, interesse financeiro, ganhos políticos ou simplesmente pelo desejo de prejudicar a reputação de outra pessoa.

Sabe quem perde com isso? Todos nós. A falsa acusação prejudica aquela pessoa injustamente acusada, mas vai além: descredibiliza toda uma rede de combate aos crimes de assédio, prejudica as denúncias verdadeiras, enfraquece as vítimas e cria desconfiança no público. Serve de combustível para alimentar a misoginia, para empoderar uma parte da sociedade que não aceita a igualdade de gênero, que defende que feminismo quer destruir os homens, que assédio é mimimi.

Denúncias falsas precisam ser desmascaradas porque servem de apoio, de subsídio, de treinamento para os profissionais que lidam com esse tipo de caso, como advogados, policiais e membros do judiciário. Eles devem ser treinados adequadamente para lidar com essas situações com sensibilidade e imparcialidade, protegendo os direitos de todos os envolvidos.

É importante não esquecer que a grande maioria das denúncias de assédio sexual é real e nos mostra uma realidade sombria em relação à violência e ao desrespeito que muitas pessoas enfrentam em suas vidas cotidianas. Vítimas legítimas merecem apoio, justiça e um ambiente seguro e encorajador para que suas vozes sejam ouvidas sem medo de retaliação ou descrédito.

Mas, se os casos forjados são poucos e as reais acusações são incontáveis, por que temos que falar sobre isso? Uma questão básica é que não se faz justiça com injustiça, não há reparação histórica que se sustente por meio de revanche. Ter dúvida sobre a inocência ou sobre a culpa de alguém é normal, o que não é normal é transformar essas dúvidas em verdades, como temos visto.

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Palmeira dos Índios

© Ricardo Silva

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Pílulas

“Se o teu melhor amigo te apunhala pelas costas pela 20ª vez, desconfie desse amigo”. Do livro Animus Jocandi, Editora Rupestre, breve nas melhores casas do ramo.

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Disha Yudina. © Zishy

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