Ele

Tom-Zé-zé-rico-2Tom  Zé em Maceió, Alagoas. © Ricardo Silva

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Planta de terraço

Ela chegou ali numa tarde em que o sol fazia do céu uma placa de churrasqueira, crestando a pele e encandeando os olhos. Precisou de três homens suados para trazê-la, aos arrancos, dentro de um pote de barro atochado de terra, pesado como um bloco da Pirâmide. Foi instalada na quina do terraço onde o vento sul e a chuva batiam oblíquos e fortes quando era o caso, e onde o sol da manhã fazia sua vistoria diária entre as seis e as oito. Era uma palmeira-ráfia altiva, eriçada de lâminas verde-escuras, reluzentes, num desenho entrecruzado que o mexer do vento e os vidros da porta corrediça multiplicavam.

Parecia que a futura crônica estava se encaminhando bem, rumo a alguma platitude final sobre a possibilidade de harmonia entre a natureza e a construção civil, mas aí o dono da casa viajou, demorou-se, foi correr trecho para minimizar o vermelho do saldo. Tome avião, tome hotel, tome entrevista na TV, tome passagem de som, tome espetáculos com zilhões de decibéis para porrilhões de pessoas, tome van do camarim para o aeroporto. E no retorno, depois de cumpridas as mais agradáveis formalidades do reencontro familiar, chegou o momento da rede no terraço. Espanto! Horror! O que era aquela estrutura marrom, cinza, com os ramos pendidos, as folhas ressecadas, espantalho de si própria? Como pode uma criatura em menos de um mês passar de vicejante a escangalhada?

Pode. Aquele recanto de terraço onde-o-vento-faz-a-curva a colocou num ângulo privilegiado do leiaute, deu-lhe uma visibilidade que vizinhos de outros prédios não deixaram de constatar; mas toda superexposição tem um preço. O dono da casa fumou em paz seu tranquilizante enquanto meditava sobre o preço da fama, o preço de brilhar e arder sob o resplendor das luzes “intelabeam”, sobre o deficit metabólico acumulado dos jet-lags, sobre o distanciamento brechtiano que lhe permitia berrar versos e fazer coreografias ensaiadas enquanto lá dentro de sua mente pensava que prato iria pedir no restaurante após o show. O vento fustiga e mata, concluiu ele, por isso que a mata se agrupa, se encouraça em números para se proteger. Palco fustiga e mata, derivou: mas lá em cima a gente é uma dúzia, e é no astro principal que mais recai o olhar vampírico e sequioso da multidão. Seu álbum seguinte se chamou “Planta de Terraço” e a foto da capa foi uma do seu próprio rosto depois de acordar e antes de fazer a barba.

Escusado dizer que foi um fracasso, o que lhe permitiu a saída honrosa de ir morar numa beira-de-praia num Estado onde ninguém o conhecia, e encher o terraço de palmeiras-ráfias que nas noites de cigarro aceso farfalhavam agradecidas.

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Aviso aos navegantes

PROF.THIMPORDevido às circunstâncias, estou trocando o pneu com o carro andando!

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Um que eu tenho (via Julio Covello)

Trojan Records, Marketed by Trojan Sales LTD. 1993. Pra ouvir de bermuda e chinelão.

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Um país de mães solo e mães solidão

Parafraseando Simone de Beauvoir: ninguém nasce mãe, torna-se mãe

Ei, você com essas olheiras batendo nos joelhos. Você que nunca teve o prazer de ler um boletim escolar na companhia de alguém. Que troca fralda com uma mão e lâmpada com a outra. Que vê um pai postando declarações de amor para o filho nas redes sociais e recebendo dezenas de likes —aê, paizão! – mas nunca vê esse mesmo paizão aparecer para levar a criança para um passeio. Que tem que implorar pela pensão com um chapéu na mão, agradecendo qualquer moeda que tilinte lá dentro.

Você que, esses dias, para não ver seu filho desapontado, comprou um presente para si mesma, deu para ele e disse: me entrega isso no Dia das Mães. Que, quando dá bronca, assiste ao menino querendo o consolo de outra pessoa, mas só tendo você em casa, volta conformado para os seus braços. Você que às vezes se tranca no banheiro e abre a torneira para o filho não te ouvir chorando baixinho.

Parece que você está sozinha e, de certa forma, está mesmo, mas também não. No Brasil, existem 11 milhões de mães solo, mulheres que lideram seus lares sem parceiros e com filhos —dessas, 150 mil ao ano sequer têm seus filhos reconhecidos pelos pais em cartório.

Some a isso as mães solo que improvisam seu solo fora das estatísticas, às vezes até morando com o pai dos filhos mas segurando sozinhas a pilastra financeira e afetiva.

Some ainda as mães solidão, aquelas que têm o pai ao seu lado mas participando só daquilo que ele pode ou gosta de participar. Aquele que faz o almoço quando pode. Que vai na reunião da escola quando pode. Como se estivesse fazendo um favor. Já a mãe, se não pode, que dê um jeito, o que deixa bem clara a hierarquia e a relação de poder silenciosa que existe da porta para dentro de muitas casas.

Às vezes, essas mães solidão são ainda mais sós do que as mães solo, porque vivem sua solidão em silêncio, na expectativa de uma transformação e de um companheirismo que nunca chega, sempre frustradas, e sem formar as redes de apoio que as mães solo logo se vêm obrigadas a formar.

Se formos somar os tipos de mãe aqui citadas, somos quantas? Quase todas neste país?

Parafraseando Simone de Beauvoir: ninguém nasce mãe, torna-se mãe. A ideia de maternidade também é construída socialmente. Dizer que não existe amor como o de mãe, que não existe coração maior do que o de mãe, pode ser uma ideia muito conveniente para os homens, mas não para nós.

Pais têm exatamente a mesma capacidade de amar e de se entregar do que qualquer outra pessoa. Tanto que alguns até ocupam o lugar de mãe. E são muito mais maternais do que certas mulheres.

A responsabilidade de criar um filho, aliás, não é nem só do pai e da mãe. É de toda a família, da comunidade e do Estado. Dizem que é preciso uma aldeia para criar uma criança. Deveríamos estar pleiteando essa aldeia fragmentada pelo crescimento urbano, pela valorização excessiva da família nuclear e pelo individualismo. E talvez só não estejamos fazendo isso porque sequer tivemos tempo de perceber a que fomos submetidas, ocupadas demais embalando berços, fritando bifes, fazendo unhas e respondendo e-mails de trabalho.

Tem um meme que viralizou na internet porque tocava todas as mães, de todas as idades. Mostrava uma mulher caída no chão de casa, a roupa e os cabelos esfiapados, e dizia: Estado civil: cansada.

Até quando?

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todo-homem-tem-seu-preço

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First Portrait of My Girl. © Jan Saudek

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Elas

Ana Maria Portinho Magalhães, atriz, diretora, produtora e roteirista brasileira. Foi casada com o cineasta Nelson Pereira dos Santos com quem teve um filho e com o cineasta Gustavo Dahl com quem teve dois filhos. © Abril Press

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Tutti-frutti

Deixa, os acomodados que se incomodem.

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Kris Ekmar. © Zishy

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Ôrra, meu

Rita Lee quis e foi exatamente o que era, mesmo quando não quiseram que ela fosse

O cérebro de uma criança é uma suruba neuronal. É sinapse pra cá, sinapse pra lá, neurônio pegando neurônio que provavelmente nunca mais vai encontrar na vida. Ou, se encontrar, provavelmente terão funções tão diferentes que um dirá ao outro: “Deus do céu, como eu pude trocar impulsos elétricos e neurotransmissores com você?!”.

O meme “se organizar direitinho, todo mundo transa” não se aplica à neuroplasticidade do cérebro infantil. Nesta cama redonda de massa cinzenta, o mais correto seria “enquanto não tá organizado, todo mundo transa”. Cada canto do cérebro fala com os outros. É possível que crianças até dois anos vivenciem sinestesia: sintam cheiros de cores, ouçam sons de cheiros, vejam cores em melodias.

Aí a gente vai crescendo e, como quem segue marcas de pneu numa estrada de terra, vai se apegando a certos trajetos. Enquanto o cérebro infantil é um campo aberto em que se pode ir pra qualquer lado –e invariavelmente pra vários ao mesmo tempo–, o cérebro adulto fixa suas malhas ferroviária e rodoviária, constrói sólidas estradas e viadutos por onde os pensamentos irão seguir pelo resto da vida. Amadurecer é um profundo processo de emburrecimento.

Ora, ora, quem sou eu pra falar de cérebro? A Folha tem a Suzana Herculano-Houzel. Tem o Drauzio Varella. Bom, sou um cronista curioso. Uma crônica é como aquela música do Adoniran Barbosa, “Torresmo à milanesa”. “Vamos armoçá/ Sentados na calçada/ Conversar sobre isso e aquilo/ Coisas que nóis/ Não entende nada”. Se você me lê é porque gosta de sentar aqui no meio-fio, perguntando “Que é que você trouxe/ na marmita, Dito?”. (Eu sou o “Dito”). Aí eu digo: “Truxe ovo frito/ Truxe ovo frito”.

Os ovos fritos dessa semana eram os neurônios do cérebro infantil, assunto de um podcast incrível que ouvi por esses dias, entrevista do colunista do New York Times Ezra Klein com a psicóloga e filósofa Alison Gopnik. Só que aí morreu a Rita Lee.

Li uma vez o livro de uma médica de cuidados paliativos. Ela dizia que o maior arrependimento das pessoas que já estavam mais pra lá do que pra cá era, invariavelmente, não terem feito o que estavam a fim em nome de seguir o que os outros supostamente esperavam delas. Imagino que a Rita Lee não padeceu desse mal. Ela foi a personificação do poema do Paulo Leminski: “Isso de querer/ ser exatamente aquilo/ que a gente é/ ainda vai/ nos levar além.”

Não conheci a Rita Lee, mas a impressão que tenho é que ela quis e foi exatamente o que era. Mesmo quando não quiseram que ela fosse. Foi expulsa dos Mutantes, que resolveram enveredar pelo rock progressivo e não a achavam boa instrumentista. Quem consegue se lembrar de uma música dos Mutantes sem a Rita Lee? Enquanto isso, ela criava, com seu grande parceiro Roberto de Carvalho e um punhado de músicos casca grossa, “Lança Perfume”, “Desculpe o Auê”, “Ovelha Negra”, “Caso Sério”, “Agora Só Falta Você”, “Baila Comigo”, “Chega Mais” –a lista vai longe. Até o sol raiar. Nas melhores pistas da cidade. Há décadas.

Eu devia ter uns seis anos quando meus pais me levaram a um show da Rita Lee. Não me lembro exatamente como aconteceu, mas num determinado momento estavam no palco, dançando, Sócrates, Casão e Wladimir: a nata da democracia corintiana. Essa imagem de um Brasil jovem, bonito, progressista, otimista e festivo ficou marcada em mim, como uma vereda talhada no jardim do meu cérebro. Volto a ela de vez em quando e colho cheirosas sinapses cheias de serotonina, endorfina e dopamina. Agradeço a esta mina tão fina. Ôrra, meu.

Publicado em Antonio Prata - Folha de São Paulo | Com a tag | Deixar um comentário
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