Anos mais tarde, os destinos do tenente Messias e da guerrilheira Estela voltaram a se cruzar, eleitos que foram presidentes de um malsinado país com população de maioria negra na América do Sul. Num histórico depoimento no Senado, Estela confirmou para um senador babaca de nome Agripino, que a acusara de mentir na ditadura, que havia mentido sim. Dizer a verdade para o torturador significa pôr em risco a vida de outras pessoas, disse ela elevando a voz
Estela parou de respirar por um momento até ter certeza de que ninguém se mexia nas sombras. Alguns dos homens haviam se afastado, talvez para comer um sanduíche no corredor. Sentiu falta de ar, como se o coração fosse parar de bater. Tentou entender o silêncio repentino até que a porta se abriu de novo e entrou um homem de uniforme verde-oliva, coturno alto, com voz de chefe. Perguntou: “Quem é esta mulher deitada no chão?” Ela estava nua, encolhida, os joelhos dobrados, havia sangue em volta de sua cabeça.
Peças de vestuário feminino pendiam em cima de um cavalete encostado na parede, com duas ripas de madeira ao lado. Por baixo de uma calça jeans desbotada, via-se uma camiseta vermelha e uma calcinha rendada bege, que se embolavam. Um dos presentes se adiantou e respondeu: “É a Estela. É durona, não quer falar. Inventa histórias, conta mentiras”. O tenente Messias chutou as costas da moça e transmitiu uma ordem de que vamos começar tudo de novo. “Me traga a ficha dela”.
Estela é mineira, tem 21 anos, foi presa num ponto de rua, envolvida com uma organização de guerrilha. Conserva uma carinha de adolescente, com os cabelos encaracolados. O tenente encarou seu rosto deformado e constatou que ela havia levado golpes na mandíbula. A arcada dentária entortara, contorcendo-se para o lado. Um dente ficou dependurado dentro de sua boca. Perturbado com a visão, ele completou o serviço desferindo um soco, que fez com que o dente avariado da guerrilheira saltasse e caísse em cima de seu coturno.
Impelido por sua própria ação, soltou um grito de que queria agora, frisou o agora, sem perda de tempo, o endereço do Pezzuti, o nome mais falado durante toda a sessão. O tempo é uma questão fundamental na tortura. Antes, emendou: “Afinal, quantos codinomes você usa, sua puta?” Tomou a cabeça da prisioneira entre as mãos, sacudiu-a e mandou trazer a maquininha de choques. Vanda fixou os olhos na cara do homenzinho asqueroso à sua frente. Não iria jamais se esquecer daquela pele engordurada, com uma mecha de cabelos caindo na testa.
Álvaro Caldas
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