Padrelladas

Sou do tempo do colchete, da meia cerzida e da Cafiaspirina. Tempo do Cigarro Beverly, do Sabonete Eucalol e do Gibi Mensal.

Meu pai tinha um “negócio” de secos, molhados e miudezas. Tudo era embrulhado em papel. A cerveja, o sabão em barra, os enlatados, tudo chegava acondicionado em caixas de madeira. Os jornais – O Globo, O Correio da Manhã, O Radical eram volumosos e não raro traziam fascículos com histórias em quadrinhos. E as casas e os móveis e os tamancos, tudo era feito com madeira. E haja árvore para ser derrubada! Naquele tempo os Klabin ainda não tinham inventado reflorestamento. Então, inventaram o plástico e todos os problemas acabaram.

***

Naqueles tempos, na modorrenta Palmeira, todo mundo (todo mundo é modo de dizer) criava seus porcos em chiqueiros.

Isso não impedia que fossem abatidos alhures aves e mamíferos. O caçador voltava com um tateto (porco do mato) e dizia que tinha matado um cateto. Dona Lindamir, nossa professora de Matemática perguntava se não tinha também encontrado uma hipotenusa para ser adicionada à soma dos catetos. Ninguém entendia por que ela dizia isso.

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O fantasma do AI-5

© Luiz Carlos Fernandes

QUEM LER o artigo do vice-presidente Hamilton Mourão, hoje no Estadão, irá terá calafrios pela perspectiva de o general vir a substituir Jair Bolsonaro na hipótese do impeachment. Mourão desfia a retórica, o conteúdo, as ameaças veladas e a alusão a fantasmas das ordens do dia e mensagens de comandantes, ministros e generais presidentes da ditadura.

Trinta e cinco anos passados do fim da ditadura e o pensamento do provável futuro presidente da República reflete a visão de mundo dos anos 1964/1968. Saiu a ameaça comunista, que não mais existe, mas subsiste a leitura da subversão pelos governadores e pelos poderes e a manipulação da opinião pública pela imprensa.

É o Executivo sofrendo interferências do Judiciário e do Legislativo, afirma o general vice-presidente, que finge não ver que quem iniciou a provocação autoritária e a pressão sobre os outros poderes foi exato o Executivo. Pelo artigo depreende-se que o general vice-presidente vê na presidência um messias atacado pelos fariseus.

O general vice-presidente apresenta seu diagnóstico sobre a crise brasileira afirmando que nunca os brasileiros fizeram tanto mal ao seu país. Essa é a tradicional leitura paternal-salvacionista dos militares brasileiros, com a qual justificaram as intervenções na estabilidade institucional desde os primeiros tempos da República.

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Bolsonaro blinda-se contra as mortes

Jair Bolsonaro criou um escudo legal que o exime de qualquer responsabilidade pelas mortes de Covid-19. Diz a MP publicada nesta quinta-feira: “Os agentes públicos somente poderão ser responsabilizados nas esferas civil e administrativa se agirem ou se omitirem com dolo ou erro grosseiro pela prática de atos relacionados, direta ou indiretamente, com as medidas de combate ao coronavírus (…).

O mero nexo de causalidade entre a conduta e o resultado danoso não implica responsabilização do agente público (…).

Na aferição da ocorrência do erro grosseiro serão considerados: os obstáculos e as dificuldades reais do agente público; a complexidade da matéria e das atribuições exercidas pelo agente público; a circunstância de incompletude de informações na situação de urgência ou emergência.”

Os erros grosseiros de Jair Bolsonaro no combate ao novo coronavírus, que já resultaram em milhares de mortes, não serão punidos.

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Ele está de volta!…

Vejo Roberto Jefferson ditando cátedra na televisão e sinto um arrepio. Roberto Jefferson?! De novo?! Pois é, o que há de pior na vida pública brasileira está de volta, como conselheiro do capitão-presidente… Na verdade, ele deveria estar recolhido aos costumes, curtindo o xilindró por tudo o que fez na atividade política, mas continua leve e solto, presidindo o PTB e fazendo negócios.

Para quem não lembra, Roberto Jefferson Monteiro Francisco, natural de Petrópolis, RJ, chegou aos refletores quando, verborrágico e com excesso de peso, foi o general da “turma de choque” do governo Collor, durante o processo de impeachment.

De lá para cá, ele mudou apenas de dimensões físicas: operou o estômago e, com isso, diminuiu de peso e ficou mais lépido.

No mais, continuou o mesmo de sempre: truculento, metido a valentão, e, sobretudo, vocacionado para apoiar o governo, seja qual for, e disso tirar o máximo de proveito possível. Em seis mandatos em Brasília, passou de Collor à base de apoio de FHC e de Lula. Na Câmara Federal, foram 13 anos de toma-lá-dá-cá. Com Lula emplacou, entre outras vantagens, o Ministério do Turismo, a presidência da Infraero, a presidência do Instituto de Resseguros do Brasil (autarquia que movimentava a bagatela de R$ 900 milhões/ano), a Eletronorte, a Delegacia Regional do Trabalho do Rio de Janeiro (base eleitoral do nobre parlamentar) e a diretoria de administração dos Correios.

Nestes últimos, em 2005, envolveu-se em um escândalo de corrupção com fraude a licitações e desvio de dinheiro público. Ante a iminência da instauração de uma CPI, o esperto Jefferson deu uma de bom moço e “denunciou” a prática da compra de deputados federais da base aliada pelo PT de José Dirceu. A prática ficou conhecida como “mensalão“. Quer dizer: depois de haver se locupletado pessoalmente, denunciou o esquema montado pelo PT e abalou o companheiro Lula. Fez um estrago danado e acabou cassado pela Câmara dos Deputados, perdeu os direitos políticos e foi condenado pelo STF a sete anos e alguns dias de prisão pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Como fora “colaborador”, ficou pouco no cárcere.

No breve governo Temer, tentou fazer a filha Cristiane Brasil ministra do Trabalho, mas a carreira da moça foi abreviada pela Polícia Federal.

Agora, Roberto aproximou-se de Bolsonaro – aquele que havia prometido afastar-se da velha política do “é dando que se recebe”, dos corruptos e oportunistas. Jefferson que de bobo não tem nada, divulgou em sua rede social uma foto segurando um fuzil e afirmando que se prepara para”combater o bom combate. Contra o comunismo, contra a ditadura, contra a tirania, contra os traidores, contra os vendilhões da Pátria. Brasil acima de tudo. Deus acima de todos“.

Em seguida, advogou o fechamento do Supremo Tribunal Federal e a perseguição à imprensa: “Bolsonaro, para atender o povo e tomar as rédeas do governo, precisa de duas atitudes inadiáveis: demitir e substituir os 11 ministros do STF, herança maldita. Precisa cassar, agora, todas as concessões de rádio e TV das empresas concessionárias Globo”.

O Messias adorou e Roberto Jefferson virou o novo mentor do presidente e líder do “Centrão” no Congresso Nacional. Caberá a ele mexer os pauzinhos se um novo impeachment for desencadeado.

É assim que a coisa funciona nesta terra de seu Cabral! Sai governo, entra governo e tudo se modifica para ficar na mesma. O baile continua e os mesmos sempre encontram um jeitinho de permanecer no salão. A orquestra segue em frente e nós, os idiotas da planície, sofremos as consequências, em meio a uma pandemia que já matou mais de 13 mil brasileiros e continua crescendo.

Só faltava o vírus Roberto Jefferson. Não falta mais.

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Diário da Crise LIII

Terminou hoje a novela dos exames de Bolsonaro. Foram negativos para o coronavírus. Felizmente acabou a novela. Todos ganharam. Bolsonaro pode dizer que foi perseguido injustamente, pois sempre disse a verdade. O Estadão pode reafirmar a tese de que a saúde de um presidente é uma questão de estado: não deve ser vista sob o ângulo de direito à privacidade.

Continua entretanto a novela do vídeo. Esta novela só termina quando o vídeo for exibido. Muitos vão extrair conclusões diferentes. Mas a conclusão que importa é a do Procurador Geral da República. Compete a ele, denunciar ou não Bolsonaro.

O Ministro da Saúde está na corda bamba. As razões são as de sempre, quase as mesmas que derrubaram Mandetta: abertura precoce, cloroquina. Nas redes sociais bolsonaristas já há um clamor pela sua demissão. Ao contrário de Mandetta nem a opinião pública antibolsonaro ele conseguiu seduzir.

As tramas envolvendo Bolsonaro ainda dominam a cena. Mesmo aqui, algumas pessoas me censuram por ser brando na crítica. Outras ficam bravas porque são a favor de Bolsonaro.

Se achasse Bolsonaro o centro do mundo já  teria me candidatado para essas expedições a Marte. Alguns acham que sou oposicão a Bolsonaro porque trabalho na Globo, onde exibo meus documentários. Sou da oposicão desde que me entendo por gente.

Hoje o sol nos abandonou. Não completamente. Na televisão perguntaram pelo gato que sempre aparece quando faço comentários. É o Nino.

Ultimamente ele está buscando lugares mais quentes para dormir. Costuma aparecer no jornal das seis. Mas hoje ele enrolou o pescoço numa sacola de papel, correu alvoroçado e com o susto se escondeu. Ele deve ter sentido aquele barulho como se o mundo estivesse caindo na sua cabeça.

Pela manhã entrevistei, junto com outros, um jurista sobre lockdown. Lembrei que medidas restritivas em crises sanitárias são quase sempre contestadas, em nome da liberdade individual. Foi assim na Revolta da Vacina, em 1904, na Revolta das Máscaras nos EUA durante a gripe espanhola, e está sendo assim agora.

Ele lembrou que as leis são para salvar vidas e mencionou a vacina obrigatória. Não tive tempo de contestar, mas a vacina obrigatória  despertou um movimento de desobediência em vários paises do mundo. Sobrevive até hoje.

O New York Times publica uma excelente reportagem sobre a pandemia na América do Sul. Estamos sendo muito atingidos, sem a mesma repercussão das tragédias na Europa e Estados Unidos.

A reportagem destaca três paises: Brasil, Peru e Equador. No Cone Sul a pandemia é mais branda. Não temos condições de impor um lockdown e manter em casa pessoas que não têm como ficar amontoadas em cômodos pequenos e úmidos: vamos sofrer muito.

Hoje li no Estadão que a pandemia está dificultando o diagnóstico e tratamento de 50 mil casos de câncer. Nem todos os hospitais estão cheios. Mas há medo de buscar tratamento e contrair o covid 19.

São tempos muito difíceis. Amanhã às 18h conversarei sobre eles com o Embaixador Marcos Azambuja, numa live do CEBRI, Centro Brasileiro de Relações Exteriores. Partilhamos de um senso de humor mesmo em situações tão terriveis como essa. O titulo é:  A tempestade perfeita. Fiz um artigo sintetizando minha intervenção inicial. Sai sexta feira no Estadão. O debate mesmo, só  aqui no Diário, para quem não teve tempo de assistí-lo.

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Jair é mesmo Airton ou Rafael?

Esses exames atestam de fato que ele não foi contaminado?

Aliados de Jair Bolsonaro seguiram o roteiro esperado depois da divulgação dos resultados dos famigerados testes para Covid-19, do presidente. Usam o episódio para acusar oposição, imprensa e o Judiciário de perseguição. Se, de fato, Bolsonaro não teve a doença, a estratégia era essa: posar de injustiçado.

Depois de uma briga que envolveu o Supremo Tribunal Federal, soubemos que os testes deram negativo. É bom lembrar que a desconfiança surgiu depois que Eduardo Bolsonaro contou à FoxNews que o resultado do teste do pai havia sido positivo. Não só voltou atrás como acusou a emissora de fake news.

Dois meses falando sobre um assunto que não deveria ser assunto em meio a uma pandemia. Tivesse o presidente sido transparente como fizeram governadores e outros líderes mundiais, como Donald Trump, de quem Bolsonaro copia os passos feito um fã de K-pop, teríamos uma crise a menos. Mas é mais forte do que sua índole barraqueira. Andou sem máscara pelas ruas, cumprimentou pessoas, apelou ao histórico de atleta, na semana passada voltou a dizer que “talvez já tenha pegado esse vírus no passado”.

Nesta quarta (13), foi às redes sociais postar bandeirinha do Brasil, mãozinha em sinal de positivo, muito orgulhoso de mais essa presepada a que submeteu a opinião pública e as instituições.

Fim de crise? Claro que não. Como se não bastasse a recuada de Eduardo, tem mais um ingrediente para alimentar teorias: quem acompanhou a divulgação do vídeo da reunião ministerial de 22 de abril conta que Bolsonaro disse que não divulgaria a “porcaria” do exame, sob o argumento de que isso poderia levar a um processo de impeachment. Por que o receio? Jair é mesmo Airton ou Rafael ou 05, pseudônimos alegadamente usados pelo presidente? Esses exames atestam de fato que Bolsonaro jamais foi contaminado pelo coronavírus?

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Haverá surpresa?

O MINISTRO Ricardo Lewandowski será relator no STF do pedido de apresentação do exame de covid-19 remetido pelo presidente da República. Dali pode sair tudo, até receita homeopática para o presidente.

Lewandowski presidiu o Senado no impeachment, quando orientou o julgamento pela cassação do mandato de Dilma Rousseff sem a perda dos direitos políticos.

Sua atitude foi criticada como contrária à Constituição pelo colega Gilmar Mendes, doutor em Direito Constitucional, em sessão plenária do STF. Lewandowski nunca respondeu.

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O 13 de Maio

Era o amanhecer de 8 de agosto de 1444, numa pequena região da região de Algarve, sul de Portugal. Os moradores surpreendidos com a notícia: 235 homens, mulheres e crianças – todos escravos, seriam arrematados em leilão (GOMES, Laurentino. Escravidão I).

Em 13 de setembro de 1817, uma família de Paranaguá iria viajar de navio. Na equipagem de Bergantin Manoel Imperador, viajariam escravos de Manoel Antônio Pereira: “Benedito, Cabra, estatura baixa, rosto redondo, Benedito, Criolo, estatura ordinária, rosto sobre comprido, José, Mina, estatura ordinária, rosto sobre comprido, João, Mina, estatura ordinária, rosto redondo, Nicolao, Cabra, estatura baixa, rosto sobre comprido, com defeito no olho direito, João, Preto Congo, estatura ordinária, rosto comprido, Francisco, Preto Rebolo, estatura de xapas, rosto sobre comprido.” (Documentos históricos do autor)

Cabra era o mestiço de negro e mulato.

No ciclo do ouro alugavam-se escravos e escravas, de um a cinco anos. A classificação era feita pela força de trabalho – tínhamos escravos de primeira, segunda e terceira classes. Os que laboravam em Minas normalmente traziam esta designação no nome.

A ausência de sobrenome era para desfazer os laços familiares, sobrando apenas o grupo étnico do qual eram originários (Angola), ou usavam o sobrenome do seu senhor, com a concordância deste.

Assim, se retirava a ancestralidade do escravo, pela brutalidade dos captores e traficantes, desfaziam-se os vínculos tribais, mas ensejava-se uma união, pela desgraça comum a todos eles. (MOURA, Clóvis. Dicionário da escravidão Negra no Brasil)

Em 13 de maio de 1888, ao abolir a escravidão, a Princesa Isabel e toda família real caíram – e adveio a “República”, esta figura francesa que gritava por liberdade, fraternidade e igualdade, mas que nunca foi plena no Brasil, e sempre sofre ameaças de personagens ou instituições autoritárias.

Toda nação foi alforriada mas os libertos, na sua maioria, ficaram sem posses, na marginalidade e na pobreza.

Tantos séculos de escravidão fizeram com que parte da elite do atraso e setores da classe média aceitem com naturalidade as grandes diferenças econômicas, sociais e regionais.

Nos registros das causas de doenças e mortes de escravos internados na Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro (1833-1849), a doença que mais os acometeu foi a tuberculose. Isto lembra a atual pandemia e de como as vítimas periféricas estão padecendo.

A desumanidade pela qual a União Federal e alguns entes federativos estão tratando a atual crise sanitária, ao ignorarem, com naturalidade, a tragédia de milhares de mortos, é a prova de que temos ainda fortes traços da escravatura em nossa atual história.

Trocaram-se algumas significações, mas a escravidão está aí, e somente políticas sociais intensas, a desconcentração de renda dos 58 bilionários e 259 mil brasileiros milionários e investimentos maciços em educação poderão, de fato, aboli-la.

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Diário da crise LII

Um dos assuntos do dia foi o vídeo em que Bolsonaro ameaça Moro de demissão.

Falei dele num podcast matinal e comentei à noite na tevê. Sempre considerei o vídeo algo interessante, porque ele nos deixa formar uma opinião própria sobre o que aconteceu.

Segundo quem o viu, Bolsonaro ameaça Moro de demissão. Temia que sua família ou mesmo aliados tivessem problemas no Rio. Falou tudo muito claramente.

Dito assim, configura tentativa de interferência política na Policia Federal. Vou esperar a divulgacão do vídeo para analisá-lo em detalhes.

Durante tanto tempo afirmei sua importância, não tem sentido esgotar o tema antes de vê-lo. Afinal o vídeo é importante porque todos teremos a chance de vê-lo e os próprios comentaristas serão julgados por suas opiniões e análises.

Aliás desde o principio afirmo a importancia do vídeo porque ele nos dá uma ideia da reunião do conselho de governo. É um documento da história contemporânea.

A transparência é boa também porque não somos crianças. Temos condições de analisar o que se passa no governo, sem mediações.

Falaram em destruir o video. Seria um atentado à história. Documentos como esse pertencem ao estado brasileiro e serão consultados por pesquisadores do futuro.

Hoje foi um dia de muito trabalho. Fiz podcast, entrevista, escrevi um longo artigo para o Estadão, comentei na tevê e ainda tomei um curto banho de sol.

Esse sim foi um grande momento. O sol de outono é muito suave. Os meninos, aliás bem grandinhos, gritavam e corriam pela rua atrás de suas pipas.

Confesso que os invejei, perdidos ao olhar aquela forma de papel colorido contra o céu azul.

Não havia como sentar, tomei sol encostado num poste defronte ao nosso prédio. Uma mulher de máscara se aproximou e pediu para fazer uma foto. Espero que não diga que quebrei a quarentena. Foi apenas um solzinho e aquela gritaria em torno das pipas.

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Ignorem o presidente

Li que ele liberou academia, barbeiro e manicure, e pensei: que idiota

A unha não tá OK. O cabelo não tá OK. A bunda também não tá OK. Pensei que abriria um champanhe no dia que anunciassem a abertura desses estabelecimentos que nos ajudam a dar um trato na aparência. Quando li que o presidente assinou um decreto que inclui academia, barbeiro e manicure na lista das atividades essenciais, só consegui pensar: que idiota.

Estou um horror. Unhas carcomidas pela insegurança dos tempos e pela falta de cuidados profissionais. Há duas semanas dei uma banana para os exercícios diários em frente à TV e me rendi ao sofá. Quando não estou trabalhando ou dormindo, estou no sofá. Às vezes, também trabalho e durmo no sofá. Se sinto culpa? Muita, mas e daí? Meu cabelo também precisa de tesoura e de hidratação, mas vai seguir desgrenhado, porém vivo, se tudo der certo.

Sinto falta de muitas coisas, como todo mundo. Das pessoas, da rua, de me sentar para um chopinho no Bracarense a caminho de casa, do vento na cara, de avião, de praia cheia. E sinto falta da Monique, da Leticia e do Hans. Monique é minha manicure, Leticia, minha personal. Nos víamos semanalmente há uns três anos. Só cancelo Leticia quando estou sem grana, mas nos falamos mesmo quando o vínculo profissional não está ativo. Meu relacionamento com o Hans é ainda mais longo, lá se vão uns dez anos. Tenho mais tempo de Hans do que de casada. Se um dia meu casamento acabar, Hans continua senhor absoluto do meu cabelo.

Mas foi meu marido quem me salvou com uma caixinha de cera da Depilsam. Não que ele ligue, quem não aguenta sou eu. Se pelo fosse árvore, a Amazônia estaria salva das garras do maléfico ministro do Meio Ambiente. Muita gente reclamando dos conjes, já eu tenho um que cuida das compras, cozinha, aprendeu a fazer pudim e, muito mais importante, a depilar, Brasil. E usa pinça para os pelinhos teimosos. Que homem.

A depilação tá OK. O desprezo pelo presidente tá mais do que OK. A sanidade mental mais ou menos OK. Sigo ignorando o presidente. De tudo o que ele fala ou faz, eu ajo exatamente ao contrário. Saiam nas ruas. Eu fico em casa. É só um resfriadinho. Já sei que é uma doença séria. Não usa máscara. Não saio sem. Aperta as mãos das pessoas. Eu não chego nem perto. Libera academia, manicure e barbeiro. Continuo fiel à estética náufraga numa ilha deserta. Diz que a doença já vai embora. Renovo o estoque de papel higiênico e de cerveja, porque vamos longe nessa. Então, só digo o seguinte: ignorem o presidente, lavem as mãos e fiquem em casa. Vai passar. Inclusive ele.

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Bolsonaro presidiu uma conversa de botequim em reunião do conselho do governo

O bolsonarês humilha aqueles que votaram no capitão em nome dos bons costumes

Quando Sergio Moro pôs na roda a questão do vídeo da reunião do conselho de governo de 22 de abril, sabia que havia ali uma bala de prata capaz de provar que Jair Bolsonaro queria trocar o diretor da Polícia Federal para blindar os interesses políticos de sua família. Ele sabia também que a bala continha outro material.

Ao chegar ao Planalto, com pompa monarquista, o capitão chamou de conselho de governo aquilo que se conhecia como reunião do ministério. Reunindo-o, ele presidiu uma conversa de botequim, e Moro mostraria isso.

A divulgação desse áudio será também um espetáculo de falta de compostura e de asneiras. Outro dia a secretária da Cultura, Regina Duarte, disse que parou de ler os livros de Olavo de Carvalho porque ele usa muitos palavrões. No governo que ela louva, o vocabulário do doutor Olavo é o de um sacristão.

Alguns presidentes respeitavam seus interlocutores. Michel Temer, Fernando Henrique Cardoso e José Sarney falam como frades. Não se pode dizer o mesmo de Dilma Rousseff e Lula, mas nenhum deles disse palavrão em reunião ministerial.

Conhecem-se os áudios das reuniões do Conselho de Segurança Nacional que decidiram baixar o Ato Institucional número 5 (Costa e Silva) e o Pacote de Abril (Ernesto Geisel). Neles não há palavrões.

O primitivismo de Bolsonaro vai além do uso de expressões chulas, transborda para a própria maneira como preside uma reunião de ministros e como lida com sua equipe de renomados “técnicos”.

Em certa ocasião ele manifestou tamanha curiosidade por detalhes de casos de violência que um dos titulares achou melhor mudar de assunto. O clima de feijoada permite que o chanceler Ernesto Araújo exponha (em bom português) suas teorias lunáticas em relação à China ou que alguém resolva qualificar a genealogia de ministros do Supremo Tribunal Federal.

É a bagunça bolsonariana. Nela o presidente libera o funcionamento de academias de ginástica e salões de beleza sem ouvir seu ministro da Saúde. Afinal, ambos sabem com quem lidam.

O vídeo da reunião de 22 de abril é um exemplo da capacidade de autocombustão do governo. Já com Moro fora, Bolsonaro disse que divulgaria seu conteúdo: “Mandei legendar e vou divulgar”.

Falou o que lhe veio à cabeça, mas dias depois a Advocacia-Geral da União pediu ao ministro Celso de Mello que reconsiderasse a decisão de pedir a gravação porque na reunião foram tratados “assuntos potencialmente sensíveis e reservados de Estado”. Parolagem, pois podia ter pedido para embargar esses trechos. Essa é a prática de governos sérios, mas quem embarga trechos assina embaixo e se responsabiliza pelo ato.

Diante da blindagem absurda, a AGU recuou e disse que se contentava em entregar uma versão com trechos embargados. Não deu certo. Sergio Moro e seus advogados não aceitaram o atalho, argumentando que não compete ao governo selecionar provas. Caberá ao ministro Celso de Mello decidir se torna público todo o vídeo ou partes dele.

Se Moro quisesse apenas provar que Bolsonaro pressionou-o para trocar o diretor da Polícia Federal, o embargo seria neutro e justificável. Ele também queria mostrar como funciona a muvuca em que se meteu.

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Mural da História

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8 de outubro|2009

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E se Bolsonaro pegar Covid-19?

Se, como diz, seus exames deram negativo, significa que ele ainda pode ser infectado

Jair Bolsonaro anunciou para seu gado que só sairá da Presidência no dia 1º de janeiro de 2027. Se se confirmar, será um alívio. Pelo que fez até agora e continua impune, é tocante sua benevolência de contentar-se com uma única reeleição —esta, já dada de barato. Mas o que o impedirá de, a qualquer momento, decretar-se eterno no poder? Se fizer isso —e não precisaria nem esperar pela reeleição—, é porque sabe que poderá contar com a impotência e o aval bovino dos demais Poderes.

Sua certeza se baseia no sucesso de sua tática, aprendida com os amigos milicianos, de governar pela bofetada. Simbólico ou não, é o tapa na cara. Bolsonaro bate e ninguém reage. Esbofeteia ministros —Sergio Moro, por exemplo, enquanto no cargo, tomou tanto na cara que parecia gostar—, aliados de primeira hora, servidores de carreira, cientistas, juristas. Dias Toffoli viu-o reduzir o STF a palanque e ficou firme, mas, sem a barba, sua face avermelhada acusava a marca da mão aberta. Quanto ao Exército, Bolsonaro pode, por enquanto, recolher a palma. Compra-o a prestações dando-lhe empregos, oficialzinho por oficialzinho.

A palavra impeachment está em todas as bocas, mas, se você esperar pelo Congresso, espere sentado. A maioria de seus membros tem motivo para manter Bolsonaro no trono: o centrão, a que pertencem Rodrigo Maia e David Alcolumbre, por estar lhe vendendo proteção, e a oposição, leia-se o PT, por preferir que Bolsonaro “sangre” até 2022 —se houver 2022. Nas horas vagas, por esporte, Bolsonaro esbofeteia os heróis da saúde, os mortos do coronavírus e os coveiros.

Donde, se não há como remover Bolsonaro pela lei ou pela força, só parece restar um recurso: sua morte. Por Covid.

Se for verdade, como afirma, que seus exames deram negativo, significa que ele ainda pode ser infectado. De preferência, por um seguidor. Deus é grande.

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O presidente avisa: o vírus é essencial

JAIR BOLSONARO baixou decreto liberando mais atividades essenciais da quarentena: agora são as academias de ginástica e os salões de beleza. A justificativa do presidente da República tem rigor cartesiano. Diz ele que as academias auxiliam na saúde, na medida em que reduzem o colesterol; e os salões de beleza por simples questão de higiene, pois as pessoas precisam cortar os cabelos e as unhas. Incluiu os barbeiros, onde há também manicures para aqueles homens que pintam as unhas com esmalte sem cor, como os gigolôs dos anos 1950).

O decreto de Bolsonaro é demagogia para estimular a rejeição do isolamento social e lançar os negacionistas do vírus às ruas, arriscando-se à contaminar-se e a contaminar os outros. Demagogia porque, ainda que seja atribuição do presidente definir atividade essencial, o STF atenuou a regra para permitir que estados e municípios, excepcionalmente, durante a pandemia, estabeleçam áreas e atividades de isolamento sem considerar a regra federal. Vivemos um cabo de guerra entre Bolsonaro e governadores e prefeitos, estes do lado mais forte da corda.

Bolsonaro decidiu sem ouvir o ministro da Saúde, que ficou com cara de tacho ao ser informado pela imprensa. Nem o general que o tutela, o número 2 de seu ministério, sabia do decreto. O Brasil está enfermo também da cabeça, já que perdeu a noção do quase certo e do muito errado, para ter ainda um presidente que conspira a todo o tempo contra a saúde. Pior, também contra a segurança nacional – porque, mais que a falta de academia, cabeleireiro e manicure, os excessos de um presidente inconsequente pode ser mais pernicioso que o vírus que ele libera.

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