Palhaço antifascista é pleonasmo

Bolsonaro, tantas vezes confundido pela mídia com um comediante, não tem nenhuma relação com a profissão

Não há classe mais desunida que a dos comediantes. Eu mesmo, quando me vejo ultrapassado no trânsito, grito: “palhaço!” —mesmo que não haja nenhuma evidência de que o motorista trabalhe no mesmo ramo que eu. Não conheço nenhum outro profissional que tenha sua profissão em tão baixa conta. Um cirurgião que entra numa briga de bar não começa a berrar: “Eu por acaso tenho cara de médico? Vocês vão ficar de medicina com a minha cara?”.

O descrédito com a profissão do palhaço não tem qualquer fundamento. Não há qualquer correlação entre o mundo do crime e a arte da palhaçaria. Conheço pastor traficante, padre pedófilo, engenheiro corrupto —nunca conheci um palhaço miliciano, um mímico assaltante, um clown assassino (a não ser, talvez, o Ronald McDonald).

A criminalidade é incompatível com a nobre arte do palhaço. Uma pessoa com a cara pintada de branco e o nariz de vermelho nunca conseguiria te vender um esquema de pirâmide. Um sujeito de flor na lapela e peruca rosa não aplicaria em ninguém o golpe do Tinder. O pobre clown não consegue nem dar a famosa carteirada: “Sabe com quem está falando? Eu sou o Palhaço Pururuca! Sou filho do Torresmo, neto do Chicharrão!”. Não funciona.

O palhaço deveria estar acima de qualquer suspeita. Entretanto, há quem culpe os humoristas por tudo, até pela guerra no leste europeu: “O povo ucraniano confiou num comediante pra traçar o rumo do país”, disse Bolsonaro, atribuindo a culpa pela guerra à antiga profissão do presidente ucraniano. De fato, tem algo de palhaço nas atitudes de Zelenski: o destemor, a franqueza, as tiradas (“quero munições, não quero carona!”, disse aos EUA). Ou seja: foi na palhaçaria que aprendeu tudo o que tem de bom. Seu lado
patriota e anticomunista, intolerante com a esquerda ucraniana mas tolerante com os fascistas do país, isso daí ele aprendeu na política mesmo. Palhaço antifascista é pleonasmo.

Bolsonaro, tantas vezes confundido pela mídia com um comediante, não tem nenhuma relação com a profissão. Covarde, tem a si mesmo em alta conta, mas se dobra aos gigantes, tanto a Putin quanto a Biden, conseguindo a proeza de se tornar inimigo de todos.

Dizia o Millor: “quem se curva aos opressores mostra a bunda aos oprimidos”. Uma guerra acontecendo e tudo o que o nosso presidente tem a mostrar aos refugiados é o próprio orifício. Não é humor, é o contrário disso: cagaço.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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