Afliceta?

Para responder Maria Alice, preciso recorrer ao cenário mítico e higienicamente inviável que é o quarto de hotel

Maria Alice me escreve perguntando o que me dá “afliceta”. Minha primeira conclusão, a partir da sua pergunta, é o tamanho da diversão do sujeito que precisa de dinheiro. Se herdeira fosse, estudaria autoficção em Paris, história da arte em Florença e me dedicaria —tão e somente —a ler e escrever livros.

Talvez me sentisse menos corrompida, mas certamente daria menos risadas.

Então, cá estou: devendo novamente para o plano de saúde, entre as dezenas de podcasts e colunas que invento, escolhendo, para esse espaço mais despretensioso e dominical, a pior (melhor) pergunta que me fizeram essa semana. E Maria Alice, necessariamente, precisava ganhar. A palavra “afliceta” reúne e resume boa parte da trajetória vívida e chorosa de uma mulher com vagina.

Claro que, para falar de afliceta, preciso recorrer a esse cenário mítico, angustiante, higienicamente inviável e solitário: o quarto de hotel.

O que sinto em quartos de hotéis merece ser estudado. A vontade extrema de voltar para casa o mais rápido possível, somada à vertigem eufórica de estar, enfim, livre e distante de tudo. A necessidade obsessiva de organizar documentos e afazeres (quem sou eu e o que vim fazer aqui?) somada ao estranho desejo de mudar meu nome, minha idade, orientação e profissão.

O nojo do controle remoto, do telefone, do cardápio, de qualquer coisa que o hóspede anterior tenha encostado enquanto estava deitado na cama (passo sempre álcool em tudo). E a certeza de que só estou tão enojada porque minha mente fica automaticamente imunda assim que fecho a porta do quarto de hotel.

Esses lugares já me complicaram um bocado. Posso trabalhar por 15 anos com alguém e não sentir nada. Mas se eu tiver que viajar com a pessoa, vou dar um jeito de seduzi-la quando o elevador chegar no meu andar. Mesmo que eu não perceba. Mesmo que não seja consciente. Mesmo que eu definitivamente não queira e deixe isso, verbalmente, bem claro. Mas algo em mim, sempre que estou sozinha e vou dormir em um quarto de hotel, brilha de forma bastante elétrica e convidativa.

Quartos de hotéis pegam o desenho de uma mulher séria, ocupada, mãe, dedicadíssima ao trabalho e o transformam em origami de pássaro.

E não sou só eu. Basta ver no bar do hotel, no lobby, no saguão, nos elevadores, a tensão sexual entre colegas de trabalho, entre recém-conhecidos de um pacote turístico, ou mesmo numa turma blasé, reunida a contragosto, para um “summit alguma coisa”.

Basta ver como moças em terninhos mostram o céu da boca em risadas de pombagira. Basta ver o tamanho da boca que executivos abrem no café da manhã, para fazer caber uma colherzinha de iogurte. Uma espécie de apetite genuíno liberado por poucas horas, antes de voltarmos para a rigorosa dieta que nos impomos para caber em corpos adultos.

Caso vá sozinha e não conheça ninguém, periga eu disparar mensagens incompreensíveis para quaisquer rapazes de um passado recente. Para nada. Eles moram a poucas quadras de minha casa e somente agora, quando estou em outra cidade, lembro de suas existências.

Chamarei de tristeza, solidão, carência, saudade. Para nada. Apenas porque sobe o morro e não se cansa, sou uma lá vai Maria, com a lata d’água na cabeça (mas estou de ponta-cabeça). Com a lata cheia, pendurada em minha pelve. Tenho um peso enorme pendendo no meio das pernas, uma angústia ancestral de liberação sexual.

Em quartos de hotéis, sinto que sou centenas de mulheres que, em milhares de anos, não puderam viver milhões de desejos.

E eu só tenho aquela noite.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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