Ponta-seca e metal

A fotografia estava em cima da mesa. Estava solta no ar, na paisagem, na escada que dá para a sala, na varanda, naquela esquina escorrega-dia, no vão, na margem. A imagem em sépia, surrada, suja. Sombras de ontens, de manhãs geladas, de cafés amargos, de jornais amarelados, do gosto da sua boca quando o beijo vem lento, suave, quase um futuro do pensamento.

Congelo esse instante para que permaneça em meus sentidos, no cheiro e na pele. Fotografo sua boca, te trago perto da imensidão das horas, escuto sem querer as batidas compassadas do seu coração.

Seu pulso é meu ritmo, sua pele meu fim, seu sonho interroga meu sim. Asas de pássaro que não alcançam o chão, que não pisam o solo, que não sabem o que é terra porque está imerso no céu, porque inventou uma nuvem, porque é assim, um passo lento, um gesto para mim.

Em seu branco e preto me permito ser matriz, ser as pazes da noite eterna, ser a prova de ser feliz. Porque és só e eu sou só, porque tem medo, porque me acorda nos pesadelos, porque me alivia dos desesperos, porque com as cores não seria intenso, porque escreve-me como se fosse seu mapa, marca sua chegada e sua partida, seus sóis e as marés revoltas em frases interrompidas.

Não me deixe abandonar sua morada, ensine-me a tecer as teias, devora-me com os talheres certos. Dilua-me em água forte, nas matizes, crie uma incisão, ponta-seca e metal. Do avesso surge outro universo, subtrai o excesso, emerge o mar contínuo no seu olhar sem fim.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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