Pra rever: sessão da meia-noite no Bacacheri

anticristodois

O cineasta dinamarquês Lars von Trier chama Anticristo (Antichrist) de “o filme mais importante de toda a minha carreira”. Provavelmente é.

O primeiro terror da carreira do realizador de Dogville e Manderlay é uma espécie de exorcismo terapêutico de uma depressão na qual se encontrava há dois anos, um teste auto-infligido de sua capacidade de dirigir novamente. Mais do que isso, o filme examina ideias e pesadelos de décadas do diretor – que garante inclusive manter um exemplar de O Anticristo, manifesto anti-cristianismo de Friedrich Nietzsche em sua cabeceira desde os doze anos de idade.

A história é dividida em capítulos, outra marca do cineasta: “Luto”, “Dor (Caos Reina)”, “Desespero (Ginocídio)” e “Os Três Mendigos”, além de um prólogo e um epílogo. As cartelas dos episódio surgem sujas, pintadas sobre ilustrações abstratas em giz, contrastando com a absorvente beleza plástica do filme, fotografado por Antony Dod Mantle (Quem Quer Ser um Milionário). Desde a lindíssima abertura, toda em câmera lenta e preto e branco – retratando uma explícita cena de sexo e orgasmo – ao assombroso final, não há qualqu er traço das restrições dogmáticas do passado de von Trier. Ele abraça aqui a necessidade do uso de todos os recursos cinematográficos para contar sua história – e chocar o público no processo.

“Chocar”, aliás, é uma palavra perfeita para determinar uma das intenções de von Trier com seu filme. Ele consegue realizar o que parecia irrealizável, um torture-porn psicológico de arte. Seria injusto extripar a produção de seus trunfos gore detalhando determinadas passagens aqui, mas fica o aviso que a violência física e psicológica e o sexo são explícitos e fundem-se sempre que podem. É como se O Albergue tivesse um filho com A Professora de Piano…

Chocantes também – ao menos para os padrões do cinema comercial – são as imagens que o filme apresenta (e como as apresenta). Em um determinado momento uma raposa eviscerada toma a tela para falar “caos reina”. A cena é risível, mas as risadas que se ouve no cinema são de puro desconforto. Como esse, há vários outros momentos que permanecem sangrados à faca na memória.

No palco estão Charlotte Gainsbourg (A Noiva Perfeita, 21 Gramas) e Willem Dafoe (Homem-Aranha 2, Manderlay), que vivem com entrega corajosa e tocante/revoltante um casal enlutado que se muda para uma cabana isolada depois da morte de seu filho. A pequena edificação, cravada na mata alta, se chama Eden – mas as forças em ação ali estão tão distantes do significado literal da palavra quanto aquele local da civilização.

Homem e mulher – ambos sem nome – mergulham em lamentação ali. Ele tenta salvá-la usando o que sabe, a psicologia. Ela se entrega à dor. As discussões são tão duras e verdadeiras que dá pra sentir-se um tanto sádico acompanhando-as. O sentimento de pesar e cinismo – uma constante na carreira de von Trier – aqui se faz presente como nunca. Segundo Anticristo, não há alento para a humanidade quando tudo o que acreditamos sobre nós mesmos é essencialmente errado.

Alemanha, França |2009|104m|Direção de Lars von Trier |Charlotte Gainsbourg|William Dafoe|Duração: 104 minutos.

Érico Borgo

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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