Conservadores do mundo: uni-vos!

Cabe a todos os democratas trazer de volta cada uma das ideias roubadas

Um dos meus prazeres nas madrugadas insones é digitar “Suassuna” no YouTube e passar horas pulando de stand-up pra stand-up. O nacionalistíssimo artista paraibano deve estar se revirando no túmulo com o termo “stand-up”, mas não há outro nome para aquelas palestras cômicas tão bem escritas e magistralmente executadas.

Suassuna foi o maior dramaturgo brasileiro na comédia e também um dos que melhor formularam um projeto para uma arte nacional popular e refinada.

A trilha aberta pelo “Auto da Compadecida“, infelizmente, foi pouco seguida. (Como exceção, o próprio filme e a série da peça, dirigidos por Guel Arraes e escritos com Adriana e João Falcão, que souberam emular a prosódia cômico-poética à perfeição).

Caso tivéssemos levado adiante o bastião de João Grilo e Chicó, nosso teatro poderia ter desembocado numa sofisticada dramaturgia para as massas, algo equivalente a um Neil Simon, nos Estados Unidos. Na TV, poderíamos ter criado uma linguagem de sitcom original, brasileiríssima.

Mas, por razões que me escapam, a comédia popular foi pra um caminho tosco, enquanto a busca pela profundidade acaba quase sempre num pseudointelectualismo prepotente e abstruso, de cineastas que têm mais vontade de aparecer como revolucionários da linguagem do que de aprender a contar uma história.

Ariano Suassuna era um conservador e reacionário de esquerda. Detestava a televisão, o hambúrguer, o rock, o pop e quase tudo o que vinha dos EUA. Discordo da maior parte dessas visões, mas é impossível não reconhecer em muitas delas críticas válidas ao mundo contemporâneo.

Outro reacionário maravilhoso, este à direita, foi Nelson Rodrigues. Em suas peças e crônicas, conseguiu passar a contrapelo tanto o falso moralismo à destra quanto as mudanças comportamentais à sinistra. Parte da originalidade do Nelson vem do fato de ele ser alguém não “à frente do próprio tempo”, como se diz, mas atrás. (No fim das contas, para ter uma visão original basta olhar de outro ângulo: qualquer outro).

O apoio de Nelson à ditadura causa repulsa, mas só quem nasceu sem um pingo de humor lê sem rir as descrições que ele faz dos hippies, da “estagiária de calcanhar sujo”, dos jovens e arrogantes artistas cabeludos decretando o fim do teatro, do cinema, da literatura.

Conservadorismo e progressismo não são bons nem maus por si só. Tudo depende do que se pretende conservar, onde se quer progredir. O bolsonarismo sequestrou termos e comportamentos. Além da família, do futebol, do amor ao país, de Deus e até do frango com farofa, garfou o termo conservadorismo. Não há absolutamente nada de conservador neste governo. É um plano de destruição: da natureza, das instituições, do patrimônio histórico, da arte e da vida.

Cabe a todos os democratas trazer de volta cada uma das ideias roubadas. Como aqueles caras do Greenpeace em vazamentos de petróleo, limpando albatrozes e pinguins com umas esponjinhas, temos que esfregar ideia por ideia com thinner, tirando dela a substância tóxica e viscosa sob a qual quase morreu sufocada.

Faremos isso em nome de um conservadorismo radical. Por nossas famílias —em todas as possíveis composições. Por nosso país —não o dos Bandeirantes, mas o dos afro-sambas. Pela liberdade —não de esculachar e matar o próximo, mas de cada um viver como bem entender.

E, pra quem acredita, por Deus —não o dos pastores que negociam propinas, mas o Deus, os deuses e as deusas dos que, em todas as religiões, levam sentido, esperança e conforto a milhões de brasileiros.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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