Quando Jorge Amado assistiu à ressurreição de Maiakóviski ou a pele de Brecht

As citações foram retiradas do livro AMADO, Jorge. Navegação de cabotagem: apontamentos para um livro de memórias que jamais escreverei. 1 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. Não cito o número das páginas para que eventuais leitores comprem ou leiam na Biblioteca Pública da primeira à última página.

Maiakóvski, Vladimir:

Eram os tempos da abertura de Khruschov, no Teatro de Sátira davam uma peça sobre Maiakóvski, a vida do poeta contada através de seus poemas. O texto da peça era composto somente com versos de Maiakóvski e com as acusações feitas à sua poesia pelos críticos e ideólogos – críticos e ideólogos defecavam insultos a catilinárias de duas latrinas situadas no alto do cenário, crítica latrinária, o asco. No palco quatro atores viviam quatro diferentes Maiakóvski: o revolucionário, o amante, o surrealista, qual o quarto? Ou seriam apenas três?

Não falo nem entendo a língua russa, mas a força tão profunda da poesia mexeu com minhas tripas, comovi-me quase às lágrimas. Jamais esquecerei o momento em que Maiakóvski suicida penetrou no palco para se dar à morte: entrou declamando o poema com que inculpou Iessiénin por ter se suicidado. Arrepiado ouvi.

BRECHT, Bertolt:

Anna Seghers me telefona do Hotel Nacional, fica defronte da praça Vermelha – Zélia e eu estamos no Metropol, diante do Bolshoi, em companhia de Neruda e de Guillén. “Acabo de chegar”, me diz, “preciso falar contigo com a maior urgência, imediatamente”: a voz nervosa. Anna veio a Moscou como eu e tantos escritores dos cinco continentes convidados a assistir o Segundo Congresso dos Escritores Soviéticos, evento de extrema significação no universo da esquerda intelectual.

Anna não veio apenas para o Congresso, deve também participar da reunião do júri do Prêmio Internacional Stálin, é jurada: quanto a mim sou premiado, a maior das honrarias que recebera até então, dá-me na União Soviética status de diplomata, importância de dirigente. É sobre o prêmio Stálin que Anna deseja me falar. Umas quantas pessoas pelo mundo afora acreditam em mim, atribuem-me poderes que eu não tenho, capacidade de resolver qualquer problema, não sei por quê. Anna Seghers é uma dessas irresponsáveis.

O problema que a aflige e ela me transmite para que a aconselhe, parece-me de gravidade incontestável, refere-se a Bertolt Brecht. Jantei com Brecht em casa de Anna – ela e o dramaturgo moram no mesmo edifício de quatro pisos em Berlim Leste, Anna no segundo, ele no quarto, se não me engano -, sou amigo de Helene Weigel, sua mulher, colegas no júri do Prêmio Internacional da Paz, do Conselho Mundial. Com Brecht só vim a ter maior contato quando da filmagem por Alberto Cavalcanti da peça O senhor Puntila e seu criado Matti, na Wien Film. Penso ter concorrido para que o teatrólogo e o cineasta pudessem se entender: de início se estranharam.

Acontece que Brecht passou a ser olhado com desconfiança pelo pecê alemão, partido de um sectarismo além do imaginável. Sem que fosse levada em conta sua vida inteira dedicada à causa do socialismo, a obra extraordinária do dramaturgo foi acusada de formalista, não se enquadrava nas normas do realismo socialista ditadas por Jdánov. Para começo de conversa, o Partido decidira, segreda-me Anna, retirar-lhe o uso do teatro que os soviéticos lhe haviam deixado quando se retiraram de Berlim, no qual Brecht e sua companhia Berliner Ensemble se instalaram e realizam trabalho de repercussão mundial.

Anna parte para a luta em defesa do amigo, arma-se o complô. Está aflita: “Vão fazer a vida de Brecht impossível, tu sabes como são essas coisas, não preciso te dizer. Mas há uma maneira, uma única, de parar com tudo isso e lhe garantir segurança, tranquilidade, a paz necessária a seu trabalho”. E que maneira é essa? ‘Obter para ele o prêmio Stálin: se o tiver ninguém ousará tocar nele e em seu teatro. Quero que me ajudes, o júri vai se reunir daqui a quatro dias’.

Foi uma correria. Primeiro a conversa com Ehrenburg, no apartamento da rua Górki, Anna conta nos dedos os votos certos para Brecht: O de Ilya, o de Neruda, o dela, quem sabe o de Aragon, o “velho” a interrompe, brusco:

– Não perca tempo com isso. O que importa é o apoio de Sacha – Sacha é Aleksandr Fadéiev que, no júri, representa o PCUS, a cujo Comitê Central pertence, membro efetivo – se ele achar que está bem ninguém vai discutir. Só há uma coisa a fazer: falar com ele.

Toma do telefone para marcar o encontro, marca, recomenda a Anna: “Vá com Jorge, Sacha gosta dele”. Era verdade, Fadéiev me estimava, considerava-me um camarada direito, em quem se podia confiar. La fomos nós, Anna e eu, conversar com o secretário-geral da União dos Escritores Soviéticos.

Foi mais fácil do que pensávamos. Exposto o problema, o autor de A Jovem Guarda não vacilou um momento, emprestou total apoio à sugestão na relação dos premiados, dos possíveis premiados, retificou, pois quem dava a última palavra, segundo ele, era o Bureau Político do Partido. Seria verdade? Não sei, não era fácil saber onde a verdade, onde o jogo de interesses. Fosse como fosse, Bertolt Brecht teve o prêmio, o pecê alemão arrepiou a carreira, desistiu de incomodá-lo. Incomodar, verbo fraco, nem de longe da ideia das misérias a que o sujeitariam, o poço de infâmias em que o afundariam.

P.S. – Bastou tomar posse na Academia Brasileira de Letras para que o genial Ruy Castro começasse a escrever bobagens. No último sábado (1º/4/2023), em entrevista com vários escritores – no UOL – sobre como eles organizam as suas bibliotecas, Castro falou que a divide em dois: os livros em língua portuguesa e os dos demais idiomas, e arruma tudo em ordem alfabética. Aí veio a besteira: Jorge Luís Borges está ao lado de Charles Bukowski. Aposto, diz Ruy, que odiaram a localização. Sabe nada o Ruy Castro. Deve estar indo dormir muito cedo, pois no tempo em que emborcava todas, virou abstêmio anos atrás para não ter o mesmo fim de seu cupincha Tarso de Castro, assistiria, chegando em casa de porre, Borges servindo um Malbec e Bukowski montando um baseado. Os dois ficam o resto da madrugada no maior papo, Bukowski sorvendo o vinho e Borges fumando a erva.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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