Quando os quadrinhos fazem a diferença

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Detalhe de O Quinze, de Rachel de Queiroz, by Shiko

Fui um leitor compulsivo de gibis. Como aprendi a ler aos 5 anos, aos 6 já andava metido entre os quadrinhos. Foram mais de sessenta anos de convívio com os heróis de papel. Afastei-me de vez deles há coisa de dois anos, quando me despedi do Super-Homem, o maior ícone da minha geração, que vem sendo metodicamente assassinado por editores mais perigosos que a kryptonita vermelha. Depois disso, passei – como já lhes disse aqui neste espaço do Zé Beto – a acompanhar apenas as aventuras do ranger italiano Tex Willer e do gaulês Asterix, passando, de vez em quando, pela releitura de Mafalda, de Quino; Peanuts, de Schulz; e Spirit, de Eisner. Mas continuo, por vício de origem, acompanhando o mercado quadrinizado. Às vezes, ele nos surpreende com mimos encantadores. Foi o que aconteceu recentemente.

Eu andava atrás da edição quadrinizada de “O Quinze”, romance de Rachel de Queiroz, que soubera ter sido lançada pela Editora Ática. A versão era datada de 2014, mas não havia jeito de encontrá-la por estas bandas. Estava prestes a encomendá-la à editora, quando – surpresa! – a localizei meio escondida entre as ofertas da Livraria Cultura. Foi uma alegria tamanha quanto a leitura da preciosa edição. Bonita, contundente, triste, mas, sobretudo, verdadeira e bem brasileira. É história de nossa gente, gente que se apega à fé e à terra em que nasceu, onde amarga sofrimento atroz, mas não perde a coragem nem a vontade de viver; gente que divide o nada com o seu semelhante e com os esquálidos animais, que considera da família.

“Encostado ao mourão da porteira de paus corridos, o vaqueiro das Aroeiras aboiava dolorosamente, vendo o gado sair, um a um, do curral. A junta de bois mansos passou devagarinho. O velho touro da fazenda saiu, arrogante. Garrotes magros, de grandes barrigas, empurravam as vacas de cria, atropelando-se. Até que a derradeira rês, a Flor do Pasto, fechando a marcha, também transpôs a porteira e passou junto de Chico Bento, que lhe afagou com a mão a velha anca rosilha, num gesto de carinho e despedida… Saída a última rês, Chico Bento bateu os paus na porteira e foi caminhando devagar, atrás do lento caminhar do gado que marchava à toa, parando às vezes, e pondo no pasto seco os olhos tristes, como numa agudeza de desesperança.”

Quando escreveu “O Quinze”, nos idos de 1930, a cearense Rachel de Queiroz tinha apenas 19 anos, mas soube registrar as cicatrizes deixadas pela estiagem de 1915 no Nordeste brasileiro. E surpreendeu. Não apenas pela pouca idade, mas por ser mulher e por haver demonstrado uma sensibilidade inusitada na época. Mais que isso: pela sobriedade e ausência de pieguice com que conseguiu desenvolver a trama, tendo como pano de fundo uma das mais dolorosas tragédias humanas – que até hoje se presta para fomentar a demagogia e o enriquecimento criminoso de políticos indecentes e mal-intencionados, sem maior resultado concreto para a população.

Não é fácil transpor para os quadrinhos uma obra literária. Ainda mais em se tratando de um clássico como “O Quinze”. Pois outro nordestino, o paraibano Shiko (na verdade, Francisco José de Souto Leite), conseguiu. E o fez com competência, mantendo a essência do texto original e valorizando-o com seu traço firme, suas aquarelas caprichadas e suas cores fortes. A sequência narrativa prende a atenção do leitor, comove, causa tristeza e revolta. E isso se deve ao talento de Shiko. O fato de ele haver morado até os 20 anos no interior da Paraíba e assistido com o avô a muitos pores do sol no dia de São José, o ajudou, com certeza. Nem por isso, o artista deixou de priorizar a simplicidade, como fez questão de registrar:

“Tentei fazer uma construção objetiva, sem grandes floreios, sem perspectivas fantásticas, enquadramentos de malabarista, ou cenas de página inteira”.

No entanto, toda a aridez da região, o desencanto das pessoas e o flagelo da seca se fazem presentes. Assim como os sonhos e as desilusões da normalista Conceição, que protagoniza o romance e diz-se ter muito da autora quando jovem.

“O Quinze”, de Rachel de Queiroz, completou cem anos no ano passado. Mas, desgraçadamente, continua mais atual do que nunca. Por isso, a versão em quadrinhos é uma boa oportunidade para os jovens do Sul-Maravilha entenderem um pouco mais do Brasil. E uma prova que nem tudo está perdido na arte quadrinizada.

Célio Heitor Guimarães

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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