Se vencedor, Lula terá de pôr fim a outro golpe, já dado pelo centrão

Manifestos têm de virar fórum permanente de defesa das instituições

Se a eleição fosse hoje, Lula (PT) teria 47% dos votos no primeiro turno, contra 29% de Jair Bolsonaro (PL) e 8% de Ciro Gomes (PDT), aponta o Datafolha. Os demais candidatos somariam apenas 5%. O petista poderia vencer a disputa no primeiro turno. No segundo, bateria o atual presidente por 55% a 35%. Muita coisa aconteceu no país em dois meses; na pesquisa, praticamente nada. E isso quer dizer que a democracia segue em perigo, ainda que sem quartelada ou Capitólio caipira.

A propósito: é fácil saber quem dá ou não piscadelas para a ditadura. Cruze os signatários dos dois manifestos em defesa do Estado de Direito —logo será divulgado o das entidades empresariais. Os ausentes ou seriam beneficiários de um regime de força ou coniventes. Em qualquer caso, golpistas também.

Não é só o golpe ou autogolpe de Bolsonaro que têm de ser esconjurados. Como evidenciou a convenção nacional do PP, na quarta (27), o Estado precisa ser “desprivatizado”. A depender do resultado das eleições, só o abismo nos contempla. Ainda que se cumpra o que pesquisa aponta, Lula terá de lidar com um Estado sequestrado.

No dia 2 de junho, afirmei neste espaço: “Ou se entende que outubro pode marcar o início do ‘desgolpe’, ou não se entende nada”. Assim estamos. A realidade é de tal sorte estupefaciente que é preciso apelar a neologismos para designar os desastres. Notem: a PEC do ICMS dos combustíveis e a dos benefícios são estupidamente ilegais. E daí? Bolsonaro e Arthur Lira, em parceria, decidiram atropelar a Constituição, a Lei Eleitoral e a Lei de Responsabilidade Fiscal na certeza de que só teriam o Supremo pela frente.

O governo que comandam fez 33 milhões de esfomeados. E caberia ao tribunal arrancar da boca dos miseráveis alguns caraminguás em nome da ordem legal. Não vai acontecer. Da inação ao populismo irresponsável, o regime comandado pela dupla cobra o seu preço em degradação institucional.

A citada convenção do PP é um emblema do que está em curso. Bolsonaro tinha a sede de poder, mas não os meios com que saciá-la. Dispunha de Paulo Guedes e só. A força de sua postulação estava na fala antiestablishment. A fatia do capital, sobretudo o financeiro, que se grudou ao destrambelhado o aproximou de gigantes como Lira e Ciro Nogueira. Ou fazia um acordo ou seria chutado da Presidência. E fez. E o centrão passou a ser a espinha dorsal do governo.

Na convenção de quarta, sem uma pontinha que fosse de escrúpulo, Nogueira afirmou, dirigindo-se ao presidente: “O nosso país precisa de um comandante. Eu sei que alguns pensam em fazer do nosso país, vou dizer, até uma ucranização. É isso que querem fazer com o nosso país. Porque, no caso da eleição do ex-presidente [Lula], nós vamos ter um Congresso de mais de 370 deputados aliados ao presidente Bolsonaro. Olha as concessões que haverá de fazer para construir a sua base. O senhor construiu a sua base não através toma lá, da cá”.

Lira e Nogueira têm em mãos a chave das “emendas do relator”, que fazem deste o governo mais corrupto da história. Com ela, conseguem manter essa base fabulosa. A maior parte do 370, se for esse o número, não é fiel a Bolsonaro, mas ao sistema de trocas que se instituiu no Congresso.

Observem: quando o ministro se refere às concessões a que Lula se obrigaria —concessões, diga-se, que seriam, então, feitas ao grupo hoje comandado por ele e por Lira —, já não está mais conversando com Bolsonaro, como finge, mas enviando um recado ao petista. É como se dissesse: “Você até pode ganhar, mas nós continuaremos a governar”.

Caso o “capitão vença”, esses caras tentarão tornar viáveis algumas das sujeiras que têm na cabeça, como senadores vitalícios e ampliação do número de ministros do Supremo. Querem o tribunal como mera corte homologatória da camarilha que hoje assalta a República, de que Bolsonaro é só um “clown”.

É preciso impedir um futuro golpe e pôr fim ao golpe em curso, comandado pelo centrão. Que as lideranças dos dois manifestos se transformem em um fórum permanente e unificado de defesa da democracia. Na melhor das hipóteses, vai dialogar com homens de Estado. Na pior, terá de enfrentar autocratas e oligarcas.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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