Ressaca da Independência

A dor  de cabeça do dia seguinte ao Sete de Setembro

Um dia depois da festa da Independência, o país acordou com uma enxaqueca insuportável. Não há cloroquina que cure.

Quando se chega a uma certa idade, a coisa se agrava. Já não se sabe mais se os sintomas são de ressaca ou de chikungunya.

Num país rachadinho ao meio, a ressaca foi democrática. Atingiu todo mundo.

De um lado, um Brasil acordou com dores na alma. Arrebatado por um sentimento de que teve seu patriotismo sequestrado. Que viu nossas cores, nossa religiosidade, nossa Copacabana serem reduzidas a um projeto de poder violento e autoritário. E que o pedido de resgate chega na forma de chantagem.

Um Brasil que viu o bicentenário da Independência esfregar nossas dependências seculares nas nossas caras. Dependência dos empresários simpáticos ao governo. De transformar o público em privada. Dependência do pão e do circo. De virilidade paternal de um imperador cujo coração

sem vida boia no éter (não estou falando de dom Pedro). Dependência de superfaturar Viagra para bater no peito e, sem auditoria, dizer com orgulho que é “imbrochável”.

A ressaca de um Brasil que viu um projeto de futuro ser trocado por uma tétrica mitificação do passado. Que viu o porte de arma ser mais importante que a vacina. Que patina em vão para encontrar racionalidade num hospício.

Mas, como escrevi, é um país que acorda rachadinho. O Brasil do outro lado acorda numa ressaca de 51. Não a cachaça, mas a enxaqueca incurável pelos 51 imóveis pagos em dinheiro vivo.O Brasil que gira em círculos preso num transe de ayahuasca entoando um mantra. Que apenas repete, repete, repete. Emula, imita o que o mito mandou. E nesse mantra defende o indefensável. Que pode dizer que é qualquer coisa, menos independente.

Mas é um Brasil que acorda numa ressaca ainda pior. Como se tivesse misturado ayahuasca com uma garrafa de 51 (agora sim a cachaça).

É pior a ressaca porque essa metade do Brasil acorda com a boca seca e saliva oculta. Com cem anos de amnésia alcoólica. Com uma dor de cabeça de rachar a cuca.

Além de uma fadiga democrática incurável. E que a festa foi de despedida. O corpo mole e o vazio no peito de quem sabe que seu Brasil rachadinho não vingou. E que a festa foi de despedida.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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