Mural da História – René Ariel Dotti por inteiro – parte II

A posse do professor René na Secretaria já foi um show. Centenas (põe centenas nisso!) de pessoas compareceram. Depois do discurso, formou-se uma fila imensa para cumprimentos. Durou umas três horas. A imprensa toda estava lá também. Naquela época, os grandes jornais do centro do país tinham sucursais em Curitiba.

Recordo que o repórter da Folha de São Paulo, acompanhado de fotógrafo, me procurou depois do discurso e pediu uma cópia, disse que era ordem direta do editor da Ilustrada. No outro dia, a Folha publicou uns seis parágrafos do discurso com grande destaque. No trecho em que defendia o fim da censura, o professor René citou uma passagem de “Coriolano”, de Shakespeare. Era um tapa de luva: o chefe da censura federal tinha o mesmo nome do personagem do bardo inglês. A Folha deu grande destaque à ironia. Edições depois da publicação dos trechos do discurso, o articulista Newton Rodrigues, que tinha espaço nobre no jornal, dedicou uma coluna inteira ao professor Dotti.

Assim que começou a gestão de René Ariel Dotti à frente da Secretaria de Cultura do Estado, a romaria foi outra. Quase todos os dias, apareciam dois ou três jornalistas. O primeiro foi o Nuevo Baby. Queriam apenas dar um abraço e desejar sucesso ao secretário. A maioria dizia que tinha trabalhado na Última Hora e sido defendida, pro bono, pelo Dotti. O processo da Última Hora marcou o professor para sempre. Dizia que o mais fundamental dos direitos humanos é o da liberdade: “De que vale o sujeito ter educação e um bom salário e não poder ler um livro ou assistir a um filme se os mesmos estão censurados?” Para ele a liberdade de imprensa era sagrada. Era adorado e idolatrado pelos jornalistas que viveram os duros tempos da ditadura militar. Qualquer problema, a hora que fosse, era dar um telefonema para o doutor René (tinham o número do escritório e o da casa dele) e ele ia para o quartel ou a delegacia. Quando dava, tirava o jornalista da repressão na base da conversa com o coronel ou delegado. Quando não dava, e levando uma procuração na pasta, era constituído advogado e ia à luta na Justiça Militar ou na Penal. Livrou todos de situações que poderiam ser terríveis. “Eram tempos pesados, depois do AI-5 acabaram com o habeas corpus. Muitas vezes, eu ficava com as mãos amarradas!” lembrava sempre. Nunca cobrou um tostão de nenhum jornalista. Às vezes, pagava, do próprio bolso, as custas do processo.

Era um homem despido de preconceitos. Quando da montagem da sua equipe de trabalho na Secretaria, trouxe pessoas de todos os credos políticos, ideológicos e religiosos. Um dia, ainda antes da posse, verificando aquela diversidade toda, comentei que havia de tudo, só faltava um muçulmano. O professor rebateu de bate-pronto: “Dois, um sunita e outro xiita”. Lembro que ao mesmo tempo em que levou o professor Danilo Lorusso, congregado mariano e anticomunista até a raiz dos cabelos, trouxe também três do Partidão: Dilma Pereira, Euclides Coelho de Souza (o Dadá do Teatro de Bonecos) e Adair Chevonika (esposa do Dadá). Eu os chamava de “os comunistas do professor René”.

Conhecia profundamente a alma humana. Lembro que uma tarde, final de expediente, estava na sala do secretário René tomando o último cafezinho e fumando um cigarrinho. O professor, ex-fumante, não era chato. Na época era permitido fumar em prédios públicos e ninguém, mesmo que não gostasse do cheiro, reclamava. Dotti nunca me censurou ou pediu para que eu não fumasse na sua frente. Mas naquele dia, de repente, do nada, disse: “Não é que você tenha pavio curto. Você simplesmente não tem pavio”. O Ivens Fontoura e o Sale Wolokita estavam juntos e caíram na risada. Nas horas difíceis, quando eu estava irritado, Sale sempre repetia a frase. O professor, como escrevi na abertura do parágrafo, era um profundo conhecedor da alma humana, por isso se tornou um dos maiores advogados criminalistas do Brasil.

Vivenciei, como todos que com ele trabalharam na Cultura, uma personalidade fascinante, capaz de realizar coisas que, a princípio, seriam irrealizáveis. Apresentado a um bom projeto, René disparava o cérebro e quase que instantaneamente melhorava o mesmo. Sonhava alto. Não media barreiras. Obstáculos existiam para serem transpostos. Já narrei aqui que quando ia à luta, o que fazia frequentemente, lançava um “maktub”. “Já estava escrito”. Estava. “Vai dar certo”. Dava!

René, na sua síndrome de perfeição, cobrava pesado, mas quase sempre com ternura. As vezes, perdia a paciência. Para ele, realizar as coisas com perfeição era algo que deveria ser inato ao ser humano. Não compreendia como alguém tendo escolhido uma profissão, recebendo a contrapartida pecuniária, não apresentasse um trabalho perfeito.

O professor era “pé-de-boi” para trabalhar. Na verdade, não há nada de vulgar no dito popular. O Oxford Languages, apontando o português informal (brasileirismo), nos diz que a expressão significa “trabalhador esforçado e assíduo ao serviço”. O René foi seguramente um dos maiores trabalhadores intelectuais e assíduo ao serviço.

Na época, eu morava na Doutor Faivre. Anos depois, já fora da Cultura, mudei para um apartamento na mesma rua. Às vezes, ia almoçar em casa e, depois da degustação, dava uma passadinha rápida na Livraria do Chain. Certo dia, em que o Chain não estava, logo não poderia me dar indicações de livros, dei de cara com a biografia do cineasta alemão Rainer Werner Fassbinder. Eu já tinha assistido a três de seus filmes: “O Casamento de Maria Braun”, “Lola” e “O Desespero de Veronika Voss”. Depois, assisti no Cine Luz a “Berlin Alexanderplatz”, com mais de 15 horas de duração, exibido em 5 partes, de segunda à sexta, das vinte às vinte e três.  O que me chamou atenção foi o título do livro: “Posso dormir quando estiver morto”. Comprei dois exemplares, um deixei em casa e outro presentei o professor.

Disse que quando li o título lembrei dele. Ele olhou, deu um sorriso e agradeceu. Dois dias depois, eu ainda não tinha chegado na metade do livro, René me deu “spoiler”, contou todo o livro, havia ficado impressionado com a louca vida do Fassbinder, que morreu aos 37 anos com mais de 40 filmes na curta carreira. Disse que, durante a leitura, Fassbinder o fizera pensar no Wilson Bueno. Bingo!

 

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
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