René Ariel Dotti por inteiro – parte V

O delegado cumpriu rigorosamente a palavra dada. Depois de colher os depoimentos, liberou todos os trabalhadores e mandou intimar o proprietário do imóvel para depor no dia seguinte. Voltei para a Secretaria, eram mais de oito da noite. O professor René respirava aliviado. Mas disse: “Amanhã começamos uma nova guerra. Vou desapropriar o imóvel e salvar o Teatro. É o mínimo que o secretário da Cultura pode fazer. Não assumi o cargo, me licenciei da advocacia, para permitir uma barbaridade dessas!”. “Maktub”.

Foi uma guerra pesada. Na manhã seguinte, o Sidney foi na Prefeitura e pegou a indicação fiscal do imóvel. Para desapropriar, o valor da indenização, depositado com a petição inicial, tem que ser em dinheiro e baseado no valor venal. A quantia espelhada na indicação fiscal do imóvel era portentosa para os parcos cofres da Cultura. O prédio, que precisava de várias reformas, não valia muito, mas o terreno, imenso, no bairro São Francisco, era uma fortuna. A Secretaria, para variar e em tempos “colloridos”, não tinha todo o dinheiro. Com mais de quarenta anos de advocacia nas costas, René Dotti não se assustou, mas como notável criminalista, resolveu tomar suas cautelas. Pediu uma ligação para o Requião, que já sabia de toda a história, e expôs que iria desapropriar o imóvel. Disse que tinha receio que o proprietário, no uso de seus direitos, requeresse um alvará de demolição. Requião, sempre solícito e amável com o professor René, disse que iria verificar a situação. Quinze minutos depois, estávamos vários na sala do professor, a secretária avisa pelo viva voz: “Prefeito Requião na linha dois”. Todos tremeram na base. O professor René atendeu, deixou o viva voz ligado, e o Requião deu a notícia que não queríamos ouvir: “Acabaram de entrar, não faz dez minutos, com um requerimento de alvará de demolição. Pela lei, o Secretário de Urbanismo tem trinta dias para despachar, já ordenei para ele segurar até o último dia”. O professor agradeceu a presteza e diligência do alcaide e desligou. Em seguida, René Dotti decretou: “Temos 29 dias para desapropriar o teatro”. Desapropriamos em 15. Mas a guerra foi pesada.

Naquela mesma manhã, o professor René me pegou pelo braço e fomos à Procuradoria Geral do Estado. Lá, ele narrou o caso para o procurador-geral, doutor Wagner Brússulo Pacheco, seu querido colega advogado e amigo de longa data. Terminada a narrativa, o doutor Wagner disse que tínhamos chegado na hora certa. Havia encontrado com o Wilton Vicente Paese no corredor e que ele, grande especialista em desapropriações, era o procurador ideal para a missão. Tinha razão. Paese, meu veterano na Faculdade, ex-presidente do Centro Acadêmico Hugo Simas, conhecia a matéria como ninguém. Quando entrei na PGE, fui trabalhar no mesmo setor que ele. Nas horas de aperto, eu pedia ajuda e ele nunca faltou. Chamado à sala do procurador-geral, Paese ouviu o caso e disse que o primeiro documento que precisava era a certidão do Registro de Imóveis. Depois, examinado o teor da mesma, me ligaria para apresentar a relação dos faltantes. Saímos dali e o professor René disse: “Os cartórios de Registro de Imóveis pedem três dias para fornecer uma certidão. Vamos lá e arrancamos na hora. Você entrega para o doutor Paese ainda hoje”. Fomos e arrebatamos a certidão em 15 minutos, depois de uma conversa do professor com o titular do Registro de Imóveis. O professor ficou na Secretaria e eu voltei na PGE com a certidão e entreguei ao Paese. Ele leu o documento e fez uma cara feia. “Paulo, a Lei de Registros Públicos é de 1973. Foi ela que instituiu a matrícula dos imóveis. Este imóvel a ser desapropriado é muito antigo. Não tem matrícula, é transcrição. A descrição do imóvel, com a testada, confrontantes, fundos e metragem total não consta da transcrição. Aqui diz apenas que é um imóvel com frente para rua Treze de Maio e fundos para o Largo da Ordem. Vocês vão ter que providenciar um memorial descritivo. Assim consigo descrever com exatidão o imóvel na petição. Do contrário, o juiz pode encrespar, afinal, como vai ter certeza que estão desapropriando o imóvel correto?”.

Voltei à Secretaria e narrei o caso. O professor René chamou o Sérgio Todeschini, titular da Coordenadoria do Patrimônio Cultural, e disparou: “Sérgio, temos que conseguir um topógrafo para elaborar o memorial descritivo do imóvel com a maior urgência”. Naquele mesmo dia, Sérgio voltou ao gabinete com um topógrafo. Disse que era o melhor da cidade. Havia uma questão, tínhamos que fazer uma licitação para contratar os serviços de topografia ou então realizar um processo de dispensa de licitação. Chamado à sala do professor René, o Sidney Davidson dos Santos deu a solução: nos casos de obras para evitar desabamentos a licitação pode ser dispensada. Era exatamente o caso, conforme acima narrado. O professor mandou o Sidney pegar os dados do topógrafo, instaurar o processo de dispensa e encerrar o mesmo. Isso durava alguns dias, ao final eram várias exigências legais e tinha que ser publicado no Diário Oficial. Sidney apressou o passo e em menos de uma semana tudo estava solucionado. Chamado de novo na Secretaria o topógrafo pediu dois ou três dias. O professor René lhe deu a manhã do dia seguinte.

A Secretaria só tinha parte do dinheiro para a desapropriação, como disse antes. O professor René não teve dúvidas, pediu uma audiência com o “São” Carlos de Almeida Ferreira, que foi importantíssimo na sustentação do Nicolau, presidente do Banestado, e ele disse que era para ir ao banco naquele momento. Já imaginando o que estava pela frente, Ferreira recebeu o professor René acompanhado de dois diretores do Banco. Narrados os fatos, os diretores perguntaram pela quantia faltante.

Informados disseram que o Banestado já tinha empenhado todo o percentual possível com a Lei Sarney. Mas que a Corretora ainda não havia feito nenhuma aplicação na referida Lei e que os valores que dispunham era aproximadamente o que o professor René necessitava. “São” Carlos de Almeida Ferreira bateu o martelo e mandou operar a doação. No dia seguinte, o dinheiro estava depositado na conta da Secretaria.

Sobre Solda

Luiz Antonio Solda, Itararé (SP), 1952. Cartunista, poeta, publicitário reformado, fundador da Academia Paranaense de Letraset, nefelibata, taquifágico, soníloquo e taxidermista nas horas de folga. Há mais de 50 anos tenta viver em Curitiba. É autor do pleonasmo "Se não for divertido não tem graça". Contato: luizsolda@uol.com.br
Esta entrada foi publicada em Paulo Roberto Ferreira Motta e marcada com a tag , . Adicione o link permanente aos seus favoritos.
Compartilhe Facebook Twitter

Deixe um comentário

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.